Risoleta C Pinto Pedro
Já em tempo de Quaresma, ainda o carnaval
Eu nem sequer sou suspeita; em termos exteriores nunca me entusiasmou muito o carnaval, razões eu tenho, são cá minhas. Mas reconheço (como não fazê-lo) que se trata de um momento marcante do ponto de vista do ritmo da natureza e da nossa biologia.
Externamente posso não aderir muito ao carnaval, mas dentro de mim há sempre um cerimonial de celebração, e se no governo, nunca me passaria pela cabeça menorizá-lo do ponto de vista das festividades do povo. A nossa vida é medida por ciclos e oposições. Expandir e contrair, rir e chorar, sair e entrar, receber e dar, subir e descer, descansar e trabalhar, semear e colher, nascer e morrer, ingerir e soltar, inspirar e expirar, e por aí fora. Quando um dos lados assume a liderança e ocupa o espaço do outro, surge o desequilíbrio e a doença. Física e mental.
O carnaval, ou Entrudo, precede a Quaresma e ambos ajudam a construir esta lógica de contrastes ou complementos, neste caso, excesso e contenção. Ou privação.
Na Grécia assumia a forma de culto aos deuses. Um ritual de fertilidade. O cristianismo recupera-o (assim foram fazendo as várias religiões em relação às anteriores e aos cultos pagãos) como o período que antecede o adeus à carne, ou a Quaresma (daí o seu nome : "carnis valles", ou os prazeres da carne). Carne em todos os sentidos, em tudo o que se refere à sensualidade. Uma espécie de acumulação de tudo aquilo de que o corpo vai ser privado. E tudo isto são formas espontâneas e muito saudáveis com que a humanidade, através ou à margem das instituições, mais ou menos inconscientemente, vai lidando com os mecanismos de regulação dos ritmos ou ciclos. Uma forma de se manter saudável.
Mas num momento como o que vivemos hoje, onde o que impera é o medo a que alguns chamam austeridade e outros aproveitamento e exploração (e talvez tudo isso seja verdade), perdemos a noção dos limites e do equilíbrio. A Terra foi explorada até ao limite dos seus recursos, a economia e as finanças assumem formas em que abstração e corrupção fazem uma aliança perfeita, já não se sabe de que cor é o dinheiro nem que aspeto tem, muito menos por onde anda, as horas de trabalho vão-se expandindo como células desreguladas de um cancro, o repouso faz-se dormindo em frente à televisão ou ao Facebook numa espécie de sonho hipnótico, e por aí fora. Nesta lógica demente em que contenção é o mesmo que incontinência, percebe-se que o Carnaval seja desvalorizado.
Felizmente, existe ainda nos humanos uma espécie de regulador, não de temperatura, mas de bom senso, e se os portugueses são um povo de brandos costumes, como costuma dizer-se, pouco dados a incendiar coisas, pelo menos em grande escala, têm, oh se têm, um barómetro interno que lhes diz quando é que devem fazer resistência passiva. E nisso ninguém os bate. Perante o excesso de pressão, a técnica das artes marciais, afastam-se para o lado e deixam que o atacante, com a sua própria força, se estatele no chão. Quando chegamos a essa fase somos verdadeiros monges zen em inabalável estado de meditação. OM!
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