Risoleta C Pinto Pedro
Noventa e nove não é cem
Nesta crónica fala-se de lixo. E descobre-se que realmente nem tudo é o que parece. Pessoas que são tratadas como lixo, afinal são ouro e o lixo, afinal, vale mesmo muito dinheiro. Quando olhado sob um determinado ponto de vista. O do amor.
A história que vou contar passa-se no Brasil, onde existe o maior aterro sanitário do mundo, chamado do Gramacho. Ali passam os seus dias (e noites) homens e mulheres, os catadores, em busca do que nós deitamos fora. São trabalhadores altamente especializados. Uns recolhem plásticos, outros material orgânico, papel, vidros de determinadas cores, roupas, livros, reproduções de arte, dividem-se por materiais. Enchem enormes sacos e são pagos pelo que recolhem. Às vezes, no meio do lixo, aparecem corpos. Esses corpos podem ser de bebés. Já aconteceu.
Estão organizados numa associação de catadores e entre eles há pessoas imensamente sensíveis que salvam livros.
Trabalham cooperando com enormes bandos de aves de rapina. Cada um sabe o que procura.
No meio do lixo fala-se de Marat, Maquiavel, Nietzche. Sonham, com esses livros, fazer uma biblioteca da associação. Interrogam-se por que razão as pessoas deitam fora tão preciosos objetos.
E entretanto chega alguém.
É quando o amor saído do lixo se transforma em arte
Chama-se Vik Muniz, é brasileiro, artista plástico de sucesso, residindo no estrangeiro, que não esqueceu de onde partiu: uma família pobre.
É este aterro o espaço escolhido para a alquimia. E tem razão. Sempre os alquimistas partiram dos menos nobres materiais. É esse o desafio.
Faz do aterro o seu atelier, conversa com as pessoas, conhece-as, ouve-as, fotografa-as (obra ao negro). Amplia as fotos e num enorme armazém coloca-as no chão e são os protagonistas que vão preencher os contornos, encher os espaços das fotos, com... lixo (obra ao rubro).
O produto final será mais uma vez fotografado e vendido em Londres, num leilão, por uma Galeria de prestígio. Por muito dinheiro. Tudo reverte a favor das pessoas e das suas vidas, da sua associação; algumas vão devolver comunitariamente o que recebem com este produto (obra ao branco).
Segundo soube, o seu autor esteve cá recentemente, na Culturgest. Não o autor do lixo (esse somos nós), mas o alquimista, o criador da transformação.
Este filme:
http://www.youtube.com/watch?v=udpDCiLrg4k
tem a duração de uma hora e trinta e quatro minutos de iluminação com efeitos de longa duração no nosso nível de inspiração, felicidade e esperança.
Um dos catadores, um homem sem instrução, faz um pequeno discurso simples sobre ecologia e reciclagem e remata, em oposição aos que defendem a inutilidade da separação de lixos: "Uma latinha tem grande importância, porque 99 não é 100"
O mais belo e eficaz discurso ecológico que alguma vez ouvi.
As mais belas e alquímicas obras de arte que alguma vez vi. Poderosas como um milagre.
O aterro irá ser descativado em 2012, as vidas de todos os que participaram mudou dramaticamente para melhor, o dinheiro obtido com as obras de arte servirá para auxiliar na transição das vidas dos que ainda lá trabalham, foi criado um centro educativo e uma biblioteca.
As peças estão em museus e nas casas (mais precisamente barracas) daqueles sem os quais estas peças não existiriam.
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