2011-10-19



Risoleta C Pinto Pedro


O jardim dos segredos carnívoros

Descalço-me, entro e olho. Corpos no chão, dos dois sexos, de diversas idades, configurações, raças, nas mais variadas posições, mas todos imóveis. Poderiam ter acabado de morrer. Poderiam estar a dormir. Contudo, estão vivos e acordados. São uma espécie de caixa de música automática que não é necessário acionar para sair a música. Em vez da música saem palavras sussurradas. Sobre a vida, a morte, o amor, relações, as deceções, acontecimentos, não-acontecimentos, reflexões, dores, queixas, pensamentos.

O chão é de madeira. Trata-se de um ginásio. Comigo entraram outras pessoas. Circulam pelo ginásio, entre os corpos. Apercebem-se, como eu, que as bocas proferem palavras, mas de cima não se consegue ouvir. Inclinamo-nos, mas não chega. Sentamo-nos. Alguns deitam-se. É possível distinguir os que já estavam dos visitantes, não pelos olhos abertos, porque alguns visitantes deitam-se junto dos corpos falantes e escutam-nos com os olhos fechados. O que realmente nos distingue é que eles falam e nós não. Uns corpos falam em português, outros em inglês, ou francês, italiano e outras línguas mais exóticas.

O que dizem é diferente, mas é igual. A fala humana, o sentimento humano, o pensamento humano. O caos, a paixão, o lamento, o insulto. Sussurrados. Quase sem emoção. A procura inconsciente da cura. Apesar da fala de todas estas bocas, o silêncio é quase terrível.

Sinto-me como num jardim de segredos carnívoros.

Existe uma paz estranha neste jardim. Apetece-me ficar, apetece-me sair.

Saio. Cá fora, um jardim naïf, melancólico e terno no cimo de um prédio da Mouraria onde funciona o Ginásio da Junta de Freguesia. O que se passa ali dentro é uma instalação, apenas uma das extraordinárias realizações a que foi possível assistir no âmbito do Festival TODOS que há três anos decorre nesta zona de Lisboa. Vale a pena estar atento, nos próximos anos.



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