2011-09-07



Risoleta C Pinto Pedro


Síndroma da desaprovação parental

Fui ao sapateiro. É um senhor de um mundo antigo, mais incisivo que simpático, autêntico. De uma extrema competência. Tenho aprendido muita coisa com ele. Não sobre sapatos, mas essencialmente sobre ética.

Ia eu a caminho do seu estabelecimento com umas sandálias que lhe levava pela terceira vez a arranjar e sentindo um desconforto difuso que às tantas teimei em identificar. E consegui. O que eu sentia era receio de que ralhasse comigo, o sapateiro. Já era a terceira vez. As mesmas sandálias. A uns sapatos que lhe levara há tempos dissera-me que não havia nada a fazer, depois levara-lhe estas, e da primeira vez ele arranjou-as e, pareceu-me, controlou-se para não fazer comentários, da segunda o conserto também foi feito, mas resmungou qualquer coisa sobre a falta de qualidade do calçado, e aquilo ficara a ecoar em mim como uma culpa. Como se me censurasse por não saber comprar sapatos. Hoje, levando-lhe as mesmas sandálias pela terceira vez, já antecipava a crítica e isso incomodava-me estranhamente. A crítica e o meu medo dela. Fui reflectindo: afinal sou adulta, posso comprar os sapatos que me apetecer, posso levá-los a arranjar as vezes que me apetecer, nunca fiquei a dever, se ele não quiser arranjá-los que diga, etc, etc, ia nestes cogitares em acesa discussão interna comigo mesma. Era uma discussão totalmente gratuita, o oponente era eu mesma. Quando percebi. Era a menina a reviver o trauma da desaprovação parental, de todas as vezes em que lhe foi desconfortável a censura dos adultos. Coisa que, afinal, descobri agora com a ajuda do meu sapateiro, transportei para o presente. O oponente eram todos os adultos da minha infância e a sua desaprovação, e o oponente era eu a reproduzir a voz antiga dos adultos que provavelmente nem teve existência significativa, mas que eu continuei a reproduzir infinitamente dentro de mim, como um disco avariado.

Suspirei de alívio: cresci, sou adulta, não tenho de prestar contas a ninguém e a opinião de cada um é muito digna e respeitável, mas não me diz o menor respeito.

Entrei no sapateiro e estendi-lhe com toda a ousadia as sandálias, que ele recebeu neutramente e que irei buscar amanhã.

Gosto mesmo daquelas sandálias. E do sapateiro. E de mim.

risoletacpintopedro@gmail.com

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