2011-06-01



Risoleta C Pinto Pedro


TULPAN

É um filme. Passa-se na estepe. Cazaquistão, mais propriamente. "Passa-se" é mais uma força de expressão. Na realidade, não se passa nada. E passa-se tudo.

Não há jornais, nem água canalizada, nem electricidade, nem lojas. Há a estepe, uma tenda onde vive uma família, uma camioneta a cair, que passa de vez em quando a vender rebuçados e legumes e outras coisas igualmente essenciais, há um rádio a pilhas, um pai, uma mãe, três crianças, um irmão ou cunhado, consoante a perspectiva, que foi marinheiro e anda a aprender a ser pastor, e um rebanho a morrer de fome. Ainda, longe, uma outra tenda onde vive outra família com uma filha que praticamente não chegamos a ver e que se recusa a casar com o tal irmão ou cunhado, porque ele tem as orelhas grandes. Facto que o amigo condutor da camioneta a cair tenta contrariar, por comparação, com uma fotografia antiquíssima do príncipe Carlos, identificado como príncipe da América.

Pelo meio muitos silêncios, o dia-a-dia de uma família de pastores, animais que morrem ao nascer, as crianças que brincam como sempre brincaram as crianças em todos os lugares e em todos os tempos, indiferentes e ao mesmo tempo permeáveis a tudo, adolescentes e as suas dores, os primeiros choques com os adultos, a serena dor das mulheres, suave, imperturbável e firme, a silenciosa dor dos homens, desesperada e violenta.

E há o chão, os panos, a comida, os rostos, os corpos, o vento, o vento, o vento, a que todos parecem indiferentes, como se não existisse. O vento desassossega mais o espectador do que as personagens, indiferentes à agitação do ar.

A sobrevivência e os seus limites, o amor, o quase impossível amor, tal como o conhecemos ou julgamos conhecer, e as suas margens. Não há palavras para o essencial, daí este filme, onde a expressão vem dos rostos, do intervalo entre as palavras, do canto das mulheres, dos gestos e dos silêncios.

Há tempo, ali. É tão dura, a vida, tão autenticamente tão inequivocamente dura, que fica uma quase inveja. A areia limpa as confusões da mente, a dura condução dos animais preenche os vazios, as necessidades do dia-a-dia sem interferências entre o ser e a natureza remetem-nos ao silêncio que desde sempre ouvimos dentro de nós, mas que um imenso ruído moderno e sofisticado de uma realidade mascarada ensurdece logo ao nascer.

risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/



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