Risoleta C Pinto Pedro
AS CONTAS
Cenário: sala de espera de um consultório. Personagens: uma talvez
mãe, uma talvez filha. Menina dos seus seis anos. Pede um lenço de
papel à talvez mãe, e canetas. Abre o lenço em três folhas. Três
páginas, sabê-lo-ei pouco depois. O lenço é para escrever. Escreve em
cima do joelho sobre uma das páginas lenço. Depois, faz um pedido à
provavelmente mãe, que esta recusa, com alguma impaciência, dizendo
qualquer coisa parecida com: “Não! Agora descansa. Mesmo agora
chegaste da escola! É demais!”
Eu não percebo, mas estou interessadíssima no que está a passar-se à
minha frente. Olho-as indiscretamente, com vontade de entrar na cena.
A certamente mãe, simpática, percebe-o claramente e esclarece-me de
forma empática: “Quer que lhe passe contas. Nunca se farta. Faz todos
os trabalhos das férias logo no primeiro dia.” Eu estou pasmada. Olho
ambas com ternura, olho a certamente filha, com saudades da que fui,
olho a certamente mãe com alguma pena, por não perceber a pérola que
tem certamente por filha. Isto existe?! A menina de seis anos faz
todos os trabalhos de férias no primeiro dia! E a mãe… queixa-se?!
Apetece-me ser a menina, para desculpar a mãe. A mãe não é culpada.
Apenas… isto é demasiado incompreensível para ela. Metade da minha
ternura vai para a menina, por ter de lutar, incompreendidamente, por
aquilo que a faz feliz.
Eu, ou aquela em mim que cresceu, também não compreendo como pode uma
criança divertir-se com contas, mas deve ser apenas um problema de
memória, da minha parte. Especulo que algo deve ter acontecido na vida
da menina que a faz divertir-se com contas. Uma professora
excepcional? Uma realidade tal perante a qual até as contas parecem
divertidas? Uma percepção excepcional que a leva a encontrar na
Matemática o elemento jogo que realmente também tem?
Ela não insiste. Conforma-se. Já está habituada. Passa a si própria as
contas, auto-suficiente. A mãe não desiste da desistência. Continua a
insistir em que ela devia descansar. Mas ela não quer descansar, não
precisa, ignora totalmente o desconselho. Como os adultos que ainda
conseguem divertir-se como as crianças fazendo aquilo de que gostam,
ela não está cansada. O que cansa é o cansaço, não o trabalho que se
ama, que nos diverte. O cansaço não tem a ver com o trabalho, tem a
ver com a falta de divertimento, com o fazer-se o que não se ama.
Eu segredo ao Universo um desejo: que ela continue a divertir-se, que
não se esqueça como é divertido fazer contas e escrever em
guardanapos.
Vou até lá fora e volto. Já não estão na sala. Devem ter sido chamadas
para dentro.
Aproximo-me de uma mesinha baixa em que não tinha reparado e dentro de
uma bonita taça de vidro vejo canetas de cores; ao lado, folhas
brancas de papel. Afinal, não teria sido preciso o guardanapo. Nem eu,
nem a menina, reparáramos. Porque o importante era divertir-se, o
importante eram as contas.
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