Risoleta C Pinto Pedro
Filme do Desassossego, João Botelho
Fui vê-lo sem desassossego. Ao contrário do que aconteceria com qualquer outro filme que soubesse, à partida, desassossegante. Às vezes fujo desses filmes como o diabo da cruz. Ou mais. Até treino a maratona para melhor fugir deles. Este, de que conheço o texto, não me desassossegou, como nunca o texto me desassossegou. Há tanta luz, tanta lucidez neste tédio, tanto ardor neste cepticismo, tanta verdade nesta dúvida e vice-versa, que embora contenha em si todos os ingredientes para deixar qualquer um deprimido. a mim faz-me sentir acompanhada, numa espécie de atordoamento existencial.
Como objecto fílmico, encantou-me a coerência representativa principalmente do protagonista, muito sóbrio e centrado, quase reencarnação da personagem, a forma como os lugares são filmados, entre o realista, o onírico e o fantástico, uma Lisboa escura, nocturna, misteriosa, tão familiar e (re)conhecida, quanto nova e surpreendente, novas perspectivas do olhar, obrigando-me a contorcer o pescoço à procura da estranhamente recordada perspectiva.
Fala Pessoa/Bernardo Soares em sentir de outra maneira sem mudar de alma. Lê-lo, encontrar-me com ele em livro ou em filme é sempre, para mim, embora mudando de alma, sentir da mesma maneira, sentir à minha maneira com alma dele.
O texto surge no filme torrencialmente, por vezes, mas até isso está certo. Foi muito corajoso e talentoso, João Botelho, em conseguir condensar em duas horas de filme (pr’aí…) 509 páginas de texto. De um autor que tem o descaramento de afirmar “não descer nunca a fazer conferências, para que não se julgue que temos opiniões”. E enche páginas e páginas delas. Embora pudesse sempre argumentar (se isso não lhe trouxesse demasiado cansaço) que não são opiniões. Ou que não são dele, mas desse (então) ainda mais anónimo Soares, que nem sequer pode, pôde ou alguma vez poderá defender-se, como personagem que permanece. A sua maior defesa (de ambos, de todos).
Termino esta breve reflexão a propósito do filme de João Botelho sobre aquele que me é o mais familiar de todos os seres, como se deve terminar. Com o fim. Que é sempre um reinício. É no início que Bernardo Soares fala do fim. E diz: “A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira.”
Razão tinha a minha filha, quando uma vez, em pequenina, ao ouvir alguém falar em Fernando Pessoa, afirmou, com toda a convicção: “Esse senhor é amigo da mamã.”. Estava habituada a ouvir falar dele, a ouvir lê-lo. Era o fantasma da família.
Era. É. Nunca ninguém me entendeu tão intimamente. Para além da morte. Desconfio que não sou a única. O que me irrita, às vezes. Mas perdoo a João Botelho por mo mostrar. Tão sincera e esteticamente.
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