2010-12-01



Risoleta C Pinto Pedro


Escrita e consciência

Às vezes escrevo coisas que nem sei. Depois, quando mais tarde as leio, umas encantam-me, outras mal as entendo. Raramente me horrorizam. Talvez, se as entendesse , algumas, me horrorizassem. Algumas das mais antigas, quando a escrita se escrevia sem mim. Talvez algumas coisas das que escrevo se tornem invisíveis aos meus olhos quando as leio, como se fossem escritas em tinta mágica que apenas se materializasse no momento próprio.

Só me apercebi de uma profunda dor escrita sem saber, quando, ao ler um excelente prefácio do Dr António Bento que, privilégio meu, fez recentemente a um livrinho que escrevi há muitos anos, em que chamava ele a atenção para algo que encontrara maravilhado no livro e que a mim me horrorizou, porque nunca “lera” o que escrevera; mesmo agora não o saberia reproduzir, mas era algo como “os filhos foram feitos para fugir”, que dito assim não me choca excessivamente, porque entendo que os filhos não são propriedade dos pais, logo se os filhos quiserem fugir para a China ou para a Lua, a vida é deles e o destino é seu e nenhum pai, nenhuma mãe, por muito que lhe dia, tem o direito de o impedir ou censurar. Mas penso que foi ainda pior o que escrevi, algo como só estar cumprido o destino de uma mãe com o fim de um filho, ou qualquer coisa terrível do género, que até se me revolvem as entranhas só de pensar que posso ter escrito isto sem se me revirarem as entranhas. A única explicação que encontro é que escrevi os meus primeiros livros de tal modo anestesiada contra uma dor excessiva que não conseguia suportar, que escrever era uma espécie de não sentir, daí poder escrever nesse tempo todo o tipo de barbaridades. Que até podem ter muita qualidade literária, dizem que sim e não contesto, e até psicológica, mas já não poderia hoje verbalizar o discurso infernal. Era de um inferno que eu estava a sair, o inferno que é para uma mãe a perda de um filho, e eu esquecera a linguagem dos pássaros e os símbolos do céu. Trazia ainda nas entranhas a crença de que o horror era a norma e era isso que verbalizava. Porque não podia sentir o que dizia e muito menos o que sentia. Não aguentaria. Falava como uma pitonisa do passado, o meu verbo era a fatalidade da calamidade e tal como uma pitonisa, estava num sonho. Foi lenta e longa a saída do túnel. Hoje, olhando ainda e sempre a sombra, mas já do lado da luz, deparo-me às vezes com a linguagem do horror. Espanto-me com ela, mas agradeço ao sono em que me encontrava ter podido atravessar o discurso da maldição e chegar hoje segura, ainda espantada, mas ilesa, a este eterno agora onde os pássaros segredam para mim música, mimos e sons de mel.



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