2010-11-17



Risoleta C Pinto Pedro


COMÉRCIO LOCAL E PSICOTERAPIA

Vou andando pela cidade a horas diferentes. Peguemos num exemplo matinal. A leitaria, onde também se vende leite. Isto é, desde os cigarros à fruta, papel higiénico, pão, café, bolachas, etc, tudo o que a vossa imaginação contiver ou libertar.

Lá dentro, o dono ou a dona, ao balcão. Eu chego e preparo-me para esperar pacientemente pela minha vez, mas toda a gente me dá a vez. Generosidade, ou talvez não. Não estão ali para ser aviadas, as clientes. Ou pelo menos, não estão ali para ser imediatamente atendidas. O atendimento que esperam é outro. Ouvirem e serem ouvidas nas suas queixas: de maridos, maleitas, falta de dinheiro, netos, o que for. O homem ou a mulher que está atrás do balcão é o psicotarapeuta. Linha rogeriana, não interventiva. Limita-se a ouvir. Nem sei se ouve, mas de vez em quando faz uns “hum, hum”. Como um irritante psicoterapeuta faria. Não há ali divã, porque não cabe, e parece que já não se usa, mas a eficácia é a mesma. Terapia de grupo. Ao fim de uma meia hora ou uma hora, consoante a disponibilidade de cada uma, lá vão partindo em direcção à lida diária, levando a meia dúzia de ovos, o quilo de maçãs ou a garrafa de óleo. É o pagamento. Não se pode dizer que seja caro, se compararmos com o que por aí se paga pelas psicoterapias, se calhar com menos resultados. Esta terapia é diária e pode ser repetida a outras horas, quando se repara que faltam os fósforos ou a alface. Mas nessa altura passa a ser individual e o próprio “psicoterapeuta” aproveita para fazer a sua própria reciclagem emocional e queixar-se dos homens das obras que nunca mais lhe acabam o trabalho.

Hoje de manhã entrei numa padaria. Um senhor idoso estava a acabar de ser atendido. Saiu a resmungar contra o chefe dos ciganos. Estranhei, porque não conheço nenhuma comunidade cigana aqui na zona. Mas quando ele acrescentou, ainda antes de se fazer à rua, que agora ele anda a ver se mata aos velhos, não comparticipando os medicamentos, para não ter de lhes pagar as reformas, eu, que não sou tão maquiavélica a ponto de ter feito este relacionamento entre a falta de dinheiro para as reformas e o preço dos medicamentos, pasmei ao perceber quem era o tal chefe dos ciganos, e pelo brilhantismo do raciocínio que ainda não ouvira a nenhum dos ilustres comentadores da crise e economistas que costumo ouvir na televisão, a ver se percebo alguma coisa, ficando normalmente sem perceber nada. Tenho de ir mais vezes à padaria à mesma hora daquele senhor, enquanto ele puder tomar os medicamentos, se a reforma der para isso, para o ouvir discorrer de modo que poderá não ser rigoroso, não sei o que dizem os economistas disto, mas que é, sem dúvida, gracioso, e não me venham falar da diminuição da capacidades dos idosos. Comecem a ir às padarias, às leitarias, às lojinhas da esquina. Apoiam o comércio tradicional e nacional e tomam contacto com as informais universidades da terceira idade. Disciplinas: psicologia e política.

risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/



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