2010-06-30



Risoleta C Pinto Pedro


O CORPO DO PORCO



Há algum tempo que me interrogo por que razão é o corpo uma fonte de problemas, ou pelo menos assim o sentimos. São as doenças, é o cansaço, são as dores, é a vergonha, a culpa, o peso, as dietas, o tamanho, a forma, o envelhecimento, sei lá.

E no entanto… quando olho as minhas mãos e vejo as mãos da menina, a que se segurava ao tronco da cerejeira para subir e vejo o sorriso que me acompanha desde que me lembro de conhecer o espelho e sinto os meus pés sólidos e resistentes e começo a fazer contas aos milhares (milhões) de quilómetros que já fizeram e de como me trouxeram até aqui intacta e segura, e os meus dentes, como se conservam activos e fazem para mim o trabalho de uma Moulinex a tender para a eternidade, e os meus braços, como sustentam as mãos que escrevem e cozinham e acariciam e saúdam, como levantam tudo o que cai, como se elevam para tudo o que sobe, como voam, como se assemelham a asas por vezes, e o cabelo, como me protege o crânio e como me acaricia o rosto em dias de vento suave…

O que aconteceu connosco, para que, perante esta maravilhosa invenção, tanto nos embrulhemos nela, tanto nos entristeçamos por ela, tão pouco nos reconheçamos nela ou tantas expectativas depositemos nela como se… não tivéssemos mais nada?

Depois começo a lembrar-me de uma provérbio da minha infância em que se dizia:

“Queres conhecer o teu corpo? Abre um porco”

Eu acreditei que não havia entre nós e os porcos a mais pequena diferença. Porque as crianças acreditam sempre nos adultos. Até começarem a desconfiar.

Um dia perguntei:

- Como é possível sermos por dentro tão parecidos com os porcos e por fora tão diferentes? E porquê?

Não tive resposta.

Mas continuava a achar os porcos uns animais simpáticos, com bastante sentido de humor, o que lhes é bastante necessário para quem vive nos sítios onde eles vivem. Só mesmo com muito sentido de humor.

Entretanto, olhava para as palavras com a mesma curiosidade com que olhava para os animais. E dissecava-as para ver como eram por dentro.

Aquela comparação entre o porco e o nosso corpo levou-me a dissecar as duas palavras. Nessa investigação vi que, embora se assemelhassem bastante, eram precisamente opostas. No que concluí que, afinal o nosso corpo não é porco. Pelo contrário. Talvez por isso, a partir de certa altura as minhas mãos deixaram de ser as mãos de Eva, a da culpa, e passaram a ser mãos que dançam sobre peles, teclados, legumes e ar. E o sorriso deixou de ser máscara, passou a ser desabrochar de flor. Como dantes era, em menina.

Mesmo assim, continuo a achar uma injustiça para com os porquinhos, esses animais de banda desenhada, os insultos que, com seu nome a nós próprios dirigimos. Não o merecemos nós. Não o merecem eles. Porque, afinal, temos uma coisa em comum: a milagrosa, magnífica e insuperável Natureza.



risoletacpintopedro@gmail.com

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