2010-05-05



Risoleta C Pinto Pedro


As casas de móveis

Aqui há uns anos andei a ver casas. Vi muitas, vi de tudo. Com vista para o rio, sem vista para o rio, grandes, pequenas, novas, velhas, feias, bonitas, arrumadas, desarrumadas, caras, baratas, bem recuperadas, a cair, cheias de coisas, totalmente vazias, bem cheirosas, imundas, com gente dentro, desabitadas, em ruas escuras, em ruas desafogadas, em sítios perigosos, em locais tranquilos, em largos, ruas, estradas, avenidas, travessas, becos, bairros. Em algumas apetecia ficar, tal era o grau de conforto, não foram muitas; de outras apetecia fugir, tal o grau de desconforto, também não foram muitas, felizmente; da maioria guardo memórias de bilhete de identidade de quem lá morava, de quem de lá saíra, de quem construíra…

As casas são muito reveladoras da nossa relação com o mundo, digo, connosco, que também somos o mundo. Algumas das anteriormente referidas tinham um não sei quê que não passa pela enumeração anterior, um não sei quê que convidava a ficar; era a alma da casa, a casa estava bem consigo, a casa estava bem. Ponto final. Outras tinham algo de repugnante que até podia não passar por algo visível, mas aquelas casas não estavam bem. Como estariam as pessoas nelas?

A casa é a habitação exterior da alma, é a porta de entrada para a casa interna, é muito importante, a casa. Pode estar muito cheia ou muito vazia, mais ou menos arrumada, pode ter coisas muito caras ou ser modesta, mas tem de existir nela uma harmonia intrínseca que se sente, uma vida, um palpitar, um entusiasmo e um repouso, um silêncio e um murmúrio, uma claridade e uma penumbra, espaço e colo, cheiro a frutos e a detergente, cores que não se dêem por elas, mas um brilho discreto em determinadas paredes, uma vontade de nos atirarmos para o chão a descansar, a rir ou a chorar, uma vontade de abrir umas janelas e fechar outras, de olhar para fora e voltar para dentro, um desejo de comemorar e de refúgio, uma vontade de voltar, de regressar, de sair para voltar a entrar, deve ter ordem e um nada de desarrumação, de convidar e de fechar, de sentar no centro e ouvir. A casa fala, o rumor vem de dentro de nós ou de dentro de um livro, ou da gaiola dos pássaros, ou do ronronar dos gatos, ou da água a ferver para o chá, ou de uma canção recordada na voz da mãe, ou de história de avó, ou do carteiro lá fora, ou da planta a crescer num murmúrio. O canto da alma da casa.

Isto não tem nada a ver com umas casas que vejo às vezes de relance nuns programas que passam na televisão, em que as pessoas chamam lá uns profissionais que fazem desaparecer tudo o que havia, pintam as paredes de cores impossíveis e deixam as casas a parecer o Ikea ou uma loja de móveis desalmada. Depois chamam as pessoas, elas emocionam-se, ou assim parece, fazem muitos gestos, muitas interjeições, agradecem muito e sentam-se nos sofás a rir estranhamente. Para sempre. Como congeladas, imobilizam-se como os móveis.

Fico sempre com a sensação que se entrar numa casa daquelas e for a uma estante buscar um livro este é daqueles objectos a fingir que há nos móveis das lojas, só lombada, sem páginas, ou então que estão todos escritos em sueco como no Ikea, que as flores, quando as há, são de plástico, que as torneiras não deitam água, que se tocar numa daquelas pessoas ela pode tombar para um dos lados, que não há nem um acarozinho (é lá possível uma casa sem ácaros, esses animais domésticos mais antigos que o mundo…), que o frigorífico está vazio ou cheio de latas de coca-cola como nos filmes americanos, que o fogão é de brincar, que as camas só têm as colchas sobre o colchão. São terríveis, estas casas, tão terríveis como algumas de que fugi quando andei a ver casas. Em relação a essas, não percebia porquê. Só o compreendi quando cheguei a uma certa casa numa rua que de todo desconhecia e a casa de imediato se transformou em rede de sesta e em colo de avó e em celeiro de infância. E as tábuas do chão subitamente eram os sobreiros da menina que eu fui e o chão apetecia-me como um colo de mãe. Nele me deitei a chorar de reconhecimento e consolo. Como uma viajante que acabou de atravessar o deserto e se deleita no oásis de água fresca e frutos. E paz.

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