2010-04-07



Risoleta C Pinto Pedro


“Pontear a vida”, Helena Cardoso

Helena Cardoso é uma estilista radicada no Porto, mas a sua obra tem uma escala muito maior. Extraordinária artista, extraordinária criadora, extraordinária mulher.

Porque se não é garantido que a arte liberta, embora seja muito provável que o faça (os exemplos de artistas que sucumbiram não chegam para me fazer duvidar… eu sei lá o que teria sido deles sem a arte…), a arte desta mulher tem realmente libertado muitas, muitas mulheres de vidas dispersas pelo meio de rebanhos nas encostas das Serras: Freita, Lvão, Montemuro, e outras.

Com elas reabilitou os antigos teares, por elas salvou alguns teares de terem o destino de tantos, tantos outros: a fogueira, por elas e com elas reabilitou e deu dignidade ao trabalho feminino.

Com peças por elas executadas (tecido, malha), criou colecções com a sua marca e estilo, em fibras naturais, lã, linho, algodão. Estas mulheres deixaram o fundo da casa e o meio dos rebanhos e voltaram a sentar-se aos teares; algumas aprenderam, outras reaprenderam, aprenderam também (não reaprenderam, porque nunca o tinham sabido) a dar um valor monetário ao seu trabalho, facto que muito as chocou, pois para elas, trabalho era guardar o rebanho, aprenderam a dar um valor humano e dignidade a si mesmas.

O processo de colaboração é interessantíssimo: Helena iniciava o tecido, dava o mote e deixava (estimulava) que elas o desenvolvessem segundo a sua intuição. Segundo ela, não há como estas mulheres que todos os dias convivem com as cores das flores, das ervas e da terra, para terem um conhecimento sábio e intuitivo do uso da cor.

Ao fim de muito tempo aprenderam, ousaram vestir as roupas feitas com os tecidos que elas próprias confeccionavam, pois de início, para elas, essas peças destinavam-se exclusivamente às “senhoras da cidade”. Um dia algumas delas passaram os modelos, a grande revolução. E gostaram.

Aqui se pode ler a história das “Capuchinhas”:

http://www.soroptimistportugal.org/files/BiografiaCapuchinhas.pdf

Algumas continuam a trabalhar. Outras, por falta de técnico que as apoie (a crise também chegou à montanha e o país é cego e surdo para o que é essencial), algumas não puderam continuar, voltaram aos rebanhos. Outras persistem, aquelas que a Helena Cardoso, que não conduz, consegue, nas suas viagens de camioneta, continuar a apoiar.

Um dia, num dos seus percursos de camioneta pela serra, Helena Cardoso encontrou um pastor vestindo uma peça sua. Um pastor vestindo uma peça que não sabia ser de estilista, coisa que não tinha para ele qualquer tipo de significado. E mais não conto, para que possam imaginar o que sentiu Helena, o que aconteceu.

É de outra história que falo hoje, mas não saberia fazê-lo sem esta introdução.

No trabalho da estilista Helena Cardoso há muito se adivinhava o que agora veio a acontecer: a criação libertou-se do vestuário e as peças transformaram-se em aguarela, em escultura, o vestuário transfigurou-se e saltou para molduras, paredes, assim criando uma nova expressão.

Os materiais continuam a ser basicamente alguns dos que a estilista usa: linho, lã, seda, líquenes (na sua ligação à natureza sempre a usou profusamente nas suas peças e as flores das serras saltaram das encostas dos montes para os tecidos por si criados). Nestas peças a lã, o linho e a seda convivem com gaze, acrílico, agrafos, botões.

Quando me deparei com as primeiras peças, assim que entrei na livraria (o espaço que recebe a sua obra desdobra-se em livraria, galeria, bar, restaurante, esplanada e as peças dividem-se pela livraria e galeria), a impressão que tive foi de estar perante um quadro em que o tecido coabitava com o mosaico. Aproximando-me, verifiquei que os “mosaicos” eram, afinal, bocadinhos de burel branco.

As peças apresentam uma imensa versatilidade quer na forma, quer nas cores, quer ainda na conjugação dos materiais. Tocou-me muito especialmente uma das peças totalmente construída sobre a cor branca, onde vi uma espécie de escrita e de onde também não está ausente a presença das vestes ou das asas esvoaçantes de um anjo ou pássaro, ou de um anjo pássaro.

Eu tinha acabado de visitar em Serralves a exposição de Lourdes de Castro e de Manuel Zimbro, e tinha ainda presente uma peça de Lourdes de Castro que embora não tivesse encontrado lá, me acompanhou durante toda a exposição: um anjo de sombra, e tinha agora aqui um anjo de luz de algodão, vira em Serralves pontas de luz condensadas num objecto de vidro que olhei como um acelerador de partículas, via agora aqui os “mesmos” fios de cores espraiando-se pelos tecidos do tear de Helena Cardoso, tinha visto as sombras bordadas à mão nos lençóis de Lourdes de Castro e tinha entrado numa loja tradicional do Porto onde vira amêndoas que são verdadeiros bordados, minuciosas peças únicas criadas à mão, e via agora o bordado criar pintura, aguarela, e tudo isto me transportou a uma mulher sobre quem escrevi recentemente, a médica Adelaide Cabete, e a sua contribuição, juntamente com outras ilustríssimas do seu tempo, para o bordado da primeira bandeira da República. As mulheres têm em si e manifestam, esta divina sabedoria do bordado do mundo (que os homens, para bem de todos e talvez para salvação do mundo, começam agora a descobrir) e qualquer pele lhes serve, qualquer material as contenta: corpo, açúcar, lã, seda, sombra, anjo, flor ou luz. Não é possível comparar as obras de diferentes criadores, mas é possível sentir comoções parecidas perante o genuíno e irreprimível impulso de criar.

Exposição: “pontear a vida, Helena Cardoso

Até 16 de Abril

Labirintho

Café-bar Livraria Galeria de Arte

Rua de Nº Srª de Fátima, nº 334 Porto



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