2010-03-24



Risoleta C Pinto Pedro


Uma história de chá

“Bebe chá para esqueceres os ruídos do mundo”
Provérbio chinês



O chá como um eremitério cujas paredes são o aroma, o calor, a água, as folhas ou as flores e o ar. Houve tempos em que era quase impossível, num restaurante ou em certos cafés, encontrar um chá que não fosse chá preto, mas hoje, com a invenção dos saquinhos, seja na versão de chá chinês ou em infusão de plantas medicinais, está sempre à mão, em casa, nas pastelarias, cafés, restaurantes, tasquinhas e em qualquer espaço público (escola, repartição pública, hospital, pousada, etc) onde exista uma máquina de bebidas quentes. É certo que dificilmente se poderá chamar chá àquela mistela de água quente açucarada de sabor indefinido, e que entre esta nova versão plastificada das máquinas e os primeiros chás da minha infância (sim, porque eu fui uma menina que tomei muito chá) existe um infinito. Mas mesmo esta mistura quase inqualificável é a prova de que existe no mundo uma memória e uma necessidade: a memória do chá, essa bebida reconfortante, perfumada e quente, por vezes curativa, uma espécie de intervalo entre desconforto e dor, entre condicionamento e medo.

O chá é o meu cigarro. Mesmo automático, pelas características próprias. Menos nocivo, embora me dê um bocado de trabalho, porque os dias de muito chá são também dias de muita casa de banho. No inverno, não é agradável tanta casa de banho. Mas também os cinzeiros têm de ser despejados. Não há prazeres perfeitos. E tem a vantagem de não ter de ser tomado à porta, ao contrário do cigarro. Ainda não é proibido beber chá nos espaços fechados.

Mas é em espaço aberto que tenho a memória dos meus primeiros chás. Eram confeccionados e tomados a frio, por pressão da colher sobre as folhas na chávena, com água semi-aquecida ao sol, com açúcar amarelo, debaixo da lúcia-lima do jardim dos meus pais. Era um jardim em primeiro andar e o gradeamento dava para outro jardim, jardim público, em cujos canteiros havia uma planta que hoje reconheço como salva, suave, aveludada e perfumada (os meus leitores que me perdoem, sei que os adjectivos são literariamente incorrectos, pelo menos assim, por grosso, mas considerem-nos como marcas do meu estilo).

Voltando ao jardim público, em frente à Câmara, existia no meio uma enorme araucária, cujas folhas com picos nunca mais me passaram despercebidas em lado nenhum. São uma das referências da minha infância.

Mas sei, por me contarem, que ainda antes destas memórias tomei muito chá de folhas de oliveira (o que, suponho, ou especulo, fez de mim uma pessoa bastante pacífica) e, receio, com tendência para tensão baixa (que é um dos (d)efeitos deste chá). Mas se o remédio em bebé fez afastar de mim a hipertensão em adulta, abençoada a antecipada bebida. A água era da fonte e era trazida pelo meu pai na sua bicicleta de jovem pai. A mãe fazia o chá que uma menina curandeira me receitara. Inocentemente. Voltei agora a tomar chá de folhas de oliveira, o meu regresso à inocência. E à de todos os que lá encontro, nesse reino antigo em que o chá era de folhas de paz e a água era da fonte trazida por um jovem e inocente pai.

Mas não fica por aqui a minha história do chá.

Às vezes os meus próprios sonhos prescrevem-me uma certa qualidade de chá e confesso que não ignoro, mas tomo muito a sério estas prescrições, isto é, tomo o chá aconselhado. Nunca me fez mal.

Chá de cidreira, de camomila, de Lúcia-lima, chá príncipe, de hortelã, de anis estrelado, chá verde, chá vermelho, chá de canela, de gengibre, de pés de cereja, de limão, de folhas de laranjeira, e das flores, chá de folhas de oliveira.

Chá de perfume e silêncio, pausa nos ruídos do mundo.



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