2010-03-10



Risoleta C Pinto Pedro


Para a reabilitação de uma palavra


“Love is the willingness
to process the negative energy
of other people.
Even if it is possible
to participate in the world
without getting dirty,
I don’t know if it is desirable.”

Leonard Orr

As crianças sabem isso muito bem. Adoram tanto sujar-se como adoram lavar-se. Quando não são proibidas de se sujar e não são obrigadas a lavar-se. Quando o prazer e ambas as coisas lhes são naturais. As crianças são alquimistas por natureza. Não têm medo do lixo e adoram lavar-se. Quando não há um adulto por perto a perturbar. São escatológicas e logo a seguir, anjos inocentes.

Vem isto a propósito da conclusão desta crónica. Mas comecemos pelo princípio, digo, pela boca. Segundo a sabedoria chinesa, tudo o que passa pela boca é da mesma natureza: alimento ou palavras. Eu acrescentaria: vómitos, beijos, sorrisos, bênçãos, maldições. Sabendo que um sorriso não é um esgar, que beijar não é morder ou roubar, mas dar. E receber.

Compreende-se por que razão algumas pessoas sentem repugnância ou preferência por certos alimentos, repugnância ou preferência por certas palavras.

Nesta linha de pensamento escrevi há tempos uma crónica sobre a reabilitação de uma letra. Faço hoje o mesmo alegremente, a pedido de Helena, em relação a uma palavra.

Helena tem uma inexplicável e permanente amnésia em relação a uma dada palavra, sendo que por vezes necessita do conteúdo dela para exprimir uma determinada ideia, faltando-lhe sistematicamente o corpo da mesma. Freud designou estes “esquecimentos” como actos falhados, uma espécie de compulsividade com que o inconsciente compensa o trabalho do consciente de remeter para a sombra o que receia.

Como eu cada vez mais respeito o poder do verbo, mas já não receio as palavras, aceitei fazer, por ela, a investigação de que ainda não é capaz. Fui então ao meu fiel Houaiss, que sobre a “palavra perdida” de Helena, diz, imperturbável, frio, sem emoções, o seguinte:

“Mistura confusa, desordenada; relacionamento sexual não monogâmico com muitos parceiros diferentes; convivência muito próxima com pessoas de todo tipo; relacionamento sexual não regido por leis ou regras.”

Ainda segundo o Houaiss, a palavra “promiscuidade” terá aparecido em 1913, escrevia-se então com acento agudo no “a” e tem um sinónimo/ variante que é “galinhagem”. O que achei extremamente insultuoso para as galinhas, que são animais antigos que respeito muito, mas a que Helena não pareceu reagir. Não reagiu igualmente aos significados sexuais da palavra, mas já mostrou alguma perturbação relativamente aos sentidos de confusão e desordem e à convivência com “pessoas de todo tipo”. É a sua veia aristocrática. Digo eu. Mas ela remeteu confusamente num discurso meio caótico, para um sonho, um daqueles sonhos que na realidade seriam puro horror, mas que no universo onírico são metáfora e símbolo. Estava ela mergulhada numa espécie de caldeirão onde um caldo orgânico a rodeava (a mim pareceu-me, pela descrição, mais alquímico) e onde boiavam pedaços de corpos, órgãos, linfa, fluidos. Na descrição dela, puro horror, na imagem que se desenhou à minha frente, criei um quadro poético e misto (promíscuo, no sentido que vim a saber ser o original) entre o universo de Dante e o de Bosch. Relativamente aos significados da palavra, pela minha parte não me surpreendi com os sentidos, que são os consensuais, coincidindo com o que toda a gente sabe, mas já me surpreendi por tão tardio nascimento da mesma. Quanto ao adjectivo promíscuo, já remonta a 1671 e significa:



“Constituído por elementos heterogéneos juntados desordenadamente, misturado, mesclado, baralhado.” Afinal, é só isto. A primeira fase do trabalho dos alquimistas. Dois degraus antes do ouro. A inevitabilidade antes do ouro.

A palavra vem do latim (promiscuus), onde tem o significado de “comum, usado em comum, geral, público” e onde, como se vê, não ostentava ainda o peso moral que entretanto adquiriu. Que lhe demos.

Conversando com Helena sobre isto, estivemos de acordo que regressar ao nascer, ao primeiro sopro, é sempre uma enorme possibilidade de readquirir a inocência: pessoas e palavras. Que podemos ter esse acto de compaixão em relação às palavras, já que as criámos, que devemos ter esse acto de compaixão em relação a nós, já que fomos criados. Talvez por nós. Pela minha parte, não voltarei a olhar a palavra com desprezo, quanto a Helena, creio que não voltará a recear lembrar o que, afinal, é tão inocente como o mundo, pelo menos, depois de o descobrirmos em toda a inocência que temos dentro de nós. Retiradas as camadas do pó do medo. A inevitabilidade.



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