2010-02-24



Risoleta C Pinto Pedro


Dois barcos



Eram dois barcos. Um vertical e outro horizontal. Separavam-nos um bocado de rio, uns valentes litros de água que nem consigo imaginar, mas os meus olhos abarcavam-nos a ambos e metiam-nos na mesma história. Um dos barcos era mimético em relação ao leito do rio, rastejante como uma serpente marinha, o outro erguia-se sobre a água como uma gaivota lançada em voo.

Tentei resistir a juntá-los na mesma fábula,

como se chama uma história onde os protagonistas não são animais, mas barcos?,

mas o próprio rio me suplicava que o fizesse.

Já tenho resistido a contar as vidas dos que vão dentro de barcos iluminados que à noite atravessam o horizonte da minha janela, já tenho resistido a contar as histórias dos barcos parados dias e noites na minha fatia de rio como se tivessem escolhido milimetricamente aquele pouso para eu os olhar, para eu os imaginar, digo, criar com eles outras imagens, tenho conseguido resistir a tudo isso, ou pelo menos a pô-lo no papel, que quanto ao resto é muito difícil, posso não escrever, mas não consigo não imaginar. Contudo, estes barcos, um rastejante, outro voador, desafiadores das leis da física, pelo menos na minha imaginação, remetem-me para o mais antigo símbolo unificador das polaridades, o branco e o negro, o alto e o baixo, a terra e o céu, o medo e o amor. Fico a olhá-los tanto tempo que tenho a ilusão

ou realmente aconteceu?

que aquela gaivota que ali vai já foi barco, que aquela sombra negra que vejo afundar-se para o mais fundo do rio já foi barco. À superfície apenas o cintilante ar, a suave ondulação. E o meu olhar unificador. Unindo o que restou da ilusão da separação, da dor. E ali ficando.



risoletacpintopedro@gmail.com
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