Risoleta C Pinto Pedro

É uma expressão de Thoreau que me encantou e encanta (uma daquelas que, numa saudável inveja, gostaria de ter sido eu a criar). Diz ele, a propósito disto, que cada galo que ouvimos cantar, cada som que ouvimos, vem recordar-nos que a nossa filosofia já está desactualizada. Relativamente ao momento. Aconselha-nos a ler, todas as manhãs, este evangelho, o que ainda não foi escrito, nem poderá sê-lo, porque já estaria desactualizado. Apenas podemos fazer o que designa como celebrar "o último instante do tempo". E se levarmos isto a sério, não fazemos mais nada, isto é, estaremos sempre em celebração. Ouvir cantar o galo recorda-nos com suave eloquência esta verdade tão simples e tão recuada dos nossos hábitos. O único som, a única música digna deste evangelho é o cantar do galo. Porque não se queixa, não provoca lágrimas nem risos. Está apenas nesse delicadíssimo, nesse finíssimo fio de navalha que é o presente. Thoreau deve ter ouvido muitos galos a cantar. Levava a pastar as vacas da família da mãe. Recordo alguns trilhos de pastores que percorri recentemente. Percorrer é maneira de dizer, a expressão é mais desvendar, desbastar, penetrar, escorregar, cair, levantar, trepar, por aí fora. Milenares, ouvi dizer. Aí, nem galos se ouviam, mas o silêncio antigo tem a sonoridade de quinhentos galos. Agora, quando se ouve um galo, fica-se sempre desconfiado. Será um galo de penas ou um telemóvel? Daí o meu espanto, há dias, perto de Carcavelos, a caminho da praia quando começo a ouvir uns galos a cantar ao desafio um canto autêntico que não tinha a mínima hipótese de ser de telemóvel, o que a seguir se comprovou. Ali para os lados do Campo dos Mártires da Pátria também há vários galos. Às vezes atravessam a estrada e apanham uns sustos, mas são tão raros e preciosos, este animais, que não acredito que alguém seja tão desprovido de consciência que lhes faça mal.



risoletacpintopedro@gmail.com
http://aluzdascasas.blogspot.com/