2009-11-18


Risoleta C Pinto Pedro


História de quem perde a sombra



Um problema em forma de drama

Fui ver A História de quem perde a Sombra, que é o mesmo que dizer a não história, porque se é a sombra que ilumina a luz, nesta história onde se persegue a sombra perdida também se persegue a história. História e personagem perseguindo a sombra assim criando a história.

O que começa por ser sugerido nesta peça é que perder a sombra equivale a não ser. Eu diria que é como perder a palavra, não a sombra sonora dela, mas o profundo e misterioso sentido dela. Trocar algo pela sombra é fazer um negócio impossível, é ficar hipotecado por toda a eternidade, entregar-se amarrado com uma corda ao pescoço, ao homem do casaco cinzento. Que assim se chama na peça, como tem sido apelidado de outros nomes por uma espécie de receio mágico acerca do poder das palavras. É o que acontece com a carta XIII do Tarot, umas vezes nomeada, outras designada por “A sem nome”.

A história não é nova, mas nova é esta nova maneira de a contar, de a cantar, de a representar.

Se a história que já conhecíamos se chamou, desde o original ás suas diferentes versões, A história do homem que perdeu a sombra, ou do homem que vendeu a alma ao diabo, etc, porque é no passado que as histórias costumam ser contadas (Era uma vez…) , embora não tenha perguntado a ninguém por que razão aparece este presente (“quem perde”) no título, é para mim muito eloquente: o título já contém de forma extremamente subtil, a moral. “Perde” não é o mesmo que perdeu, não há nada de definitivo neste perder, ele perde, mas… recupera. E em troca de quê? Da alma. A bolsa ou a vida, a alma ou a sombra. E como escolhe? Mal por mal fica a sombra, que sempre se vê, que sempre é uma companhia, que sempre é a condição do sol.

Talvez este personagem seja mais esperto do que se pensa e tenha percebido que o “homem do casaco cinzento” lhe apresentava uma falsa questão, um silogismo, uma espécie de enigma. E que bem o resolveu: Fica lá com a minha alma, que eu fico com a sombra. Entende-se como pressuposto que se tivesse renunciado à sombra, teria renunciado à alma; escolhendo a sombra e renunciando à alma, ganhou, no meu entender, as duas. Isto é: ganhou a alma sombra ou a sombra da alma, ganhou essa sombra que é a alma e assim ganhou o três em um, porque deste modo não perdeu o direito ao espírito. Assim sendo, como com aqueles antigos vendedores de feira que se comprássemos o cobertor, a manta e o edredão recebíamos ainda uma faca de campismo, igualmente ele ganhou o direito ao corpo, porque sem sombra não há corpo. Claro que isto é uma teoria minha, mas é irresistível não se teorizar a partir do belo problema colocado por esta nova leitura proposta pelo dramaturgo. Uma outra leitura teria sido possível: o Homem sem sombra escolhia a alma, prescindia da sombra, e talvez o resultado pudesse ser o mesmo. Como sabemos, existem várias resoluções para o mesmo resultado de um problema. Possivelmente o homenzinho do casaco cinzento (permitam-me que o trate assim, é um homenzinho de papel) coloca ao homem sem sombra uma questão falsa. O problema não está na resposta, está na dor que representa para ele a escolha. E a coragem que representa escolher. Talvez o mais importante não seja o que escolher, mas o escolher. Seja qual for a escolha, há que honrá-la, há que deixar de ter medo dela, pela confiança na crença de que o homenzinho do casaco cinzento só sabe colocar problemas cinzentos, digo, falsos. E quantos homenzinhos de casacos cinzentos se levantam do pó da estrada, à nossa frente, com perguntas sem pés nem cabeça deixando-nos atarantados, apavorados com medo da pergunta, da escolha, da resposta!


Às vezes, quando vou ver um espectáculo que fala comigo, escrevo imediatamente após o espectáculo (o meu texto escreve-se através de mim), outras, como foi o caso, o texto vai-se espraiando pela minha sombra até que surge à luz.

As palavras, ouvi-as deliciada entre um registo de narrativa infantil, o delírio onírico e a análise psicanalítica. Um pouco como o que sucede com Alice no País das Maravilhas, que é muito mais do que uma história para crianças.

A música, que vai da interpretação vocal à criação de cenários sonoros, cria ambiente, acolhe a dramatização, mas por vezes é possível, por um exercício conceptual, desligá-la por momentos do que está a acontecer em cena e vale por si só. A canção inicial é um esplêndido desafio aos actores/cantores muitíssimo bem resolvido. Os actores formam um triângulo isósceles, logo, perfeito na paridade das duas actrizes, complementadas pela figura masculina que como não tem sombra é o elemento ideal para criar uma paradoxal tridimensionalidade. Cantam, dizem, representam, sugerem, contagiam, puxam-nos para o palco sem nos tirarem do lugar.

Na linha da companhia do Chapitô, este teatro é despojado, embora não tão minimalista como outras peças que lá vi, o suficiente para não criar estranheza, o suficiente para se assumir como um trabalho autónomo deste conjunto de criadores que após muito escrever, muito dizer, muito rasgar e muito refazer, pelos caminhos da sombra, discretamente iluminam numa tenda de circo, a sombra de cada um de nós. E a nossa coragem para nunca mais termos medo de responder a perguntas batoteiras e enganosamente difíceis, de repostas finalmente muito fáceis. Estamos condenados à solução, ainda que provisória, ainda que imperfeita, ainda que a refazer, exactamente como o trabalho de criação.

Ficha Técnica:
Criação colectiva
Texto - Miguel Castro Caldas
Encenação - Sofia Cabrita
Com: Hugo Silva, Leonor Cabral, Letícia Liesenfeld
Cenografia/Figurinos – João Calixto
Música – Paulo Brandão, Sílvio Rosado
Espaço – Companhia do Chapitô




risoletapedro@netcabo.pt
http://aluzdascasas.blogspot.com/



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