2009-10-07


Risoleta C Pinto Pedro


Cinderela, uma história de sapatos sem pés nem cabeça



Calço o 35. É assim, pronto, não me cresceram os pés. Às vezes chego ao escandaloso 34. Habituei-me a isto e até acho (ou achava) graça. Há quem se orgulhe de ser grande, há quem se orgulhe de ser pequena. Tão estúpida é uma coisa como outra, mas faz parte das nossas ilusões, recreações.

Quando ia (deixou de ser assim, já explico) comprar sapatos era com uma ponta de inexplicável orgulho que dizia o meu número: 35 ou… 34!

Até me contarem a verdadeira história da Cinderela. Que, não o sabia eu, nasceu na China. Portanto, juntou-se o ideal ocidental da beleza loira com o oriental da beleza de pés minúsculos. Como os meus. Mais, muito mais do que os meus. Como não sou loura, consolava-me com ter os pés pequenos, alguma coisa tinha da Cinderela. Uau!

Como toda a gente sabe, na China atavam-se os pés das meninas de forma apertadíssima para que não crescessem. Era o máximo, um must, ter os pés pequenos. Não admira que andassem aos saltinhos. As que conseguiam, porque algumas, com as gangrenas que desenvolviam, ficavam literalmente sem pés, que tinham de lhes ser cortados.

Quando soube disto até pensei se com esta minha valorização dos pés pequenos, não serei uma reencarnação de uma dessas chinesas… à qual não cortaram os pés, claro. Alguma a quem a história tenha corrido bem. Mas adiante. Eu ia falar da Cinderela. Que não custa acreditar na sua origem chinesa. Recordem-se que o sapatinho era tão pequenino que só no seu pé entraria. Até aqui tudo bem, uma história feliz. O pior vem a seguir. Recordam-se das irmãs, as más… parece que tinham os pés grandes, o que não custa acreditar que esteja associado à maldade. Portanto elas tinham os pés grandes, eram duas, feias, más e queriam o príncipe, o que parece uma enorme contradição. Para além disso, tinham um problema (dois, a bem dizer, quatro, pela multiplicação) para resolver: os pés tinham de entrar no sapato. Felizmente tinham a mãe, para pensar por elas (uma desgraça nunca vem só). Para além dos defeitos todos não me parece que fossem muito inteligentes. Mas a mãe, que não é por acaso que era também madrasta, pensou por elas, e para que os pés coubessem… cortou-lhes os dedos. Pois bem, mesmo assim… não couberam!

Os da Cinderela, sim. Ou não fosse ela tão boazinha, isto é: auto-reprimida, emocionalmente congelada, conformada, cheia de falso glamour, com abóboras a fazerem de carruagem, enfim, meia tonta. Mas com uma grande qualidade: pés pequenos. Ele, o príncipe: belo, rico, heróico, activo, poderoso, levemente paranóico, ausente. Controlador. Aparece no baile e depois a controlar o tamanho dos pés.

Final da história, que não necessita de mais comentários. É tudo muito eloquente.

Ontem fui à sapataria. Perguntaram-me o número.

- 36!

Respondi, cheia de esperança de que me servissem. Estive para dizer 37, mas seria visivelmente escandaloso. Veio o 36. Não serviu. Veio o 35. Estão-me largos. Não digam a ninguém. Não tenciono ir à China nesta encarnação. Ando desconfiada das minhas memórias celulares



risoletapedro@netcabo.pt
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