2009-09-23


Risoleta C Pinto Pedro


MÚSICA E MEMORIAL



Como um harmónio

Bach teria gostado. Refiro-me ao único concerto a que assisti ao vivo do fim-de-semana “Os dias da Música” deste ano. Claro que fui ouvindo pela rádio o mais que pude, mas existiu uma incompatibilidade entre a minha programação dos afectos (o que mais me move…) e a programação musical do CCB. Por isso, fui ouvir apenas o “Bach bem Temperado”, no domingo de manhã. Porque estava com muita curiosidade relativamente à peça de Helena Romão. Foi pois a mão da curiosidade, mas também do afecto, que me levou até à festa. Pelo caminho fui ouvindo rádio: Bach, Haendel, outros.

O concerto, para marimba e flautas de bisel estimulou-me o sentido estético e o intelecto.

Pelo caminho da música lembrei-me muito do tratamento do tempo no Memorial do Convento, onde se comporta como um harmónio. Tão depressa estamos com um pé no século dezoito e outro no século XX (o da escrita, e se mais pés tivéssemos, outro necessitaríamos para o nosso tempo), como de repente o harmónio se fecha e eis-nos esborrachados num aqui sem espaço, mas com todos os tempos. Sem desconforto, mas com perplexidade. Assim ouvi este concerto. Com conforto, surpresa e prazer. Citações, evocações de outras músicas de outros tempos, e no entanto aqui estávamos nós no século XXI ouvindo sonoridades que são as do nosso tempo, temperadas com a memória cultural, histórica e afectiva de outro século. O fascínio que compositores de tantos séculos atrás continuam a exercer sobre os actuais criadores. Como noutras artes. Veja-se, na literatura, lendo O Memorial do Convento, o indesmentível experimentalismo (chamemos-lhe assim), a inovação e o espírito do nosso tempo que assim se vai construindo também na prosa de Saramago, e no entanto por ali passa a elegante e circular escrita de Vieira e de outros escritores barrocos. Estamos em que tempo, ainda que saibamos de que tempo somos?

Existe na música o tempo, mas está a música no tempo? O tempo tem uma música? A música, tendo o tempo terá ela um tempo? E como se tempera hoje o tempo da música? Era bem temperado o cravo de Bach, passará ainda hoje pela temperança o tempero da música?

Estas e outras as reflexões que pelo meio do enleio da música me passaram pelo intelecto. Talvez seja esta a marca do tempo desta música, como de alguma arte que hoje se faz: não bastam as sensações, ela procura-nos, mas não lhe basta o corpo para que a sintamos, apela ao pensamento e neste ao conceito. Apela ao ser inteiro que somos e não faz a coisa por menos. Gosto disso.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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