2009-09-16


Risoleta C Pinto Pedro


Afinal, a fruta ainda tem perfume.



Já não a guardam é nos sótãos. Talvez porque já não há sótãos. Ou porque os sótãos é que já não são o que eram. Costumamos depreciar a fruta actual, e conto-me entre essas pessoas, dizendo que já não tem qualidade, já não tem sabor, já não tem aroma, nem bichos. Afinal, verifico que não é bem assim. Moro no coração da cidade, numa das muitas aldeias que ela ainda guarda escondidas no seu seio, ou ventre ou coração. Num pequenino pátio interior que tenho, iludo-me imaginando que estou algures entre a Andaluzia, o norte de África, o Alentejo, um quintal de Alfama do século XV ou algum dos vários quintais da minha infância, contando entre esses os dos meus avós. Num deles tinha uma espécie de casa da árvore, noutro, muita terra para chafurdar com água, noutro ainda, um esconderijo atrás da capoeira, e sempre, sempre, subindo um pouco, os sótãos. Onde entre outras maravilhas e segredos se guardava a fruta, no chão, sobre um saco de serapilheira.

Aqui na cidade tenho um pequeno terraço a fazer de quintal, alguns vasos com árvores a fingir de chão de terra, uma casinha ao fundo a fingir de um misto da casa da árvore e do sótão. Procuro, instintivamente, intuitivamente (não são a mesma coisa mas “casam-se” bem) reconstituir aqui as condições para a saúde da alma. A falta de espaço também contribui para isso. Foi assim que, terminadas as compotas da estação, levei para lá um tabuleiro com a fruta sobrante e o milagre deu-se. A substituir o habitual cheiro a humidade da casinha, um delicioso aroma a peras, a maçãs, quase igual ao antigo.

Mesmo normalizada, mesmo sem bichos, mesmo sem sabor. Tem perfume e é generosa, liberta o perfume que tem. E não é preconceituosa, perfuma marquises como perfumava dantes os sótãos. Há esperança no mundo.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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