Risoleta C Pinto Pedro
Humores
Helena acordou de mau humor, o que é uma coisa que a põe de muito mau humor. Porque não está habituada, não sabe como é que se vive nesse estado. Nos dias de assim (felizmente raramente, diz ela), quando assim acorda, é um drama mais próximo da tragédia. Porque é como se tivesse de reaprender tudo: a abrir a torneira do duche de mau humor, a vestir-se de mau humor, a tomar o pequeno-almoço de mau humor, a sair de casa de mau humor. Não sabe. O que a põe de péssimo humor. Quando sai de casa, o mau humor já está do tamanho de uma montanha. Não sai. Arrasta-se. Arrasta atrás dela uma montanha seca, estéril e, paradoxalmente, sob uma tempestade.
Nesses dias necessita como nunca de um milagre. Quando o milagre não acontece (ou ela não consegue vê-lo, porque está de mau humor), volta rapidamente para casa e aí se amortalha debaixo do mau humor que entretanto já adquiriu a consistência do betão e aguarda que uma noite reponha tudo e a leve de volta ao paraíso, à inocência e ao sol. O que sempre acontece.
Mas quando o milagre é tão escandalosamente visível como a apoteose de um musical, dá gosto assistir à transfiguração de Helena. Perde quilos num segundo, perde rugas num segundo, perde máscaras num segundo, perde as armas todas que levava, os impermeáveis, o sarcasmo, os rosnares, os silêncios pesados, os dardos e as setas. Eleva-se, despe-se, rodopia e veste-se de sol. Ou de arco-íris. De acordo com o humor emergente. Abraça o mau humor, agradece-lhe ter-lhe sido vestíbulo e acompanha-o até à terra do Não. Regressa cheia de flores e guarda apenas uma. Para celebrar sozinha em silêncio quando chegar a casa. Para perfumar o futuro.
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