Risoleta C Pinto Pedro
O mito da salvação do mundo
Helena vinha do canil-gatil de Lisboa, em Monsanto onde fora visitar uma gatinha para adoptar quando ela tivesse alimentado os 9 gatinhos recém-nascidos e estes estivessem autónomos.
Conta-me:
- É um local estranho, nesta altura rodeado de cores e perfumes naturais das ervas campestres e eucaliptos. Lá dentro, funcionários de uma simpatia inusitada, e uma limpeza exemplar.
Os gatinhos estão em jaulas impecavelmente cuidadas e os animais parecem-me ser bem tratados.
Disseram-nos que normalmente conseguem arranjar donos para a maioria dos gatos, e certamente para os pequeninos.
Os cães estão guardados em pequenas “celas” abertas, umas ao lado das outras, e mal entrámos, para os vermos, foi impressionante a fila de cabeças saídas, enfileiradas, olhando-nos com expressões suplicantes onde lemos “levem-me”. São bem tratados, bem alimentados, têm veterinários que os observam e tratam, mas… estão presos por correntes a um pequeno espaço circunscrito. Compreendo que dificilmente poderia ser diferente, alguns dos cães têm um ar feroz e são efectivamente perigosos, foi-nos recomendado que não nos aproximássemos, mas outros têm olhos doces e tristes. De raça ou rafeiros, são seres tristes. Um cãozinho branco com um olho de cada cor chama-me a atenção. Continuo o meu caminho olhando para trás. Reconheço que não posso salvar o mundo dos gatos, o mundo dos cães. Isso remete-me à minha humanidade.
Já em Lisboa passo pela Baixa. Uma mulher que vive debaixo das arcadas do terreiro do Paço ergue um punho fechado para o céu. Invectiva Deus.
Na Graça, um vagabundo sentado num degrau gesticula freneticamente contra algo ou alguém que não vejo. Também não posso trazê-los para casa. Não posso? Não quero. Não posso. Não sei. Reconheço que não posso salvar o mundo dos humanos. Isso remete-me mais uma vez à minha humanidade. Vou trazer uma gatinha, daqui a um mês, a juntar aos que já cá tenho, quando os gatinhos estiverem autónomos e já não precisarem dela. Enquanto ela quiser cá estar. Quando ela precisar de mim. Ou eu dela? Não sei. Remeto-me à minha humanidade.
Aqui se cala Helena. É um daqueles momentos em que é nítido que não quer mais conversa.
Uns dias mais tarde conta-me que morreram todos os gatinhos e quase ia morrendo a mãe. Causa: o stress a que estão sujeitos os animais fechados em jaulas, uma mãe a amamentar vinte e quatro em vinte e quatro horas uma imensa ninhada. Não há mãe, por mais devotada, por mais instinto que tenha, que aguente. O leite perde qualidade, os bebés adoecem, sem defesas contagiam-se uns aos outros, e morrem.
Não se queixam, não têm direito a notícia no jornal, não acusam os deuses que não souberam poupá-los à predestinação.
A vida continua. Lá fora há vagabundos de olhar irado onde se lê:
Nem te atrevas a meter-me entre muros! A dignidade não passa por aí!
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
|