2009-07-01


Risoleta C Pinto Pedro


Escola e novo paradigma



Sabemos como as estruturas são lentas na mudança, mas também sabemos que é incontornável o que tem de acontecer. Demore lá o que demorar. Isto vem a propósito da instituição escola. Todos aqueles que, por defesa, ainda não se tornaram insensíveis, sentem que o ritmo da vida e da escola são incompatíveis. Toda a gente sabe isso. Mesmo quando os professores conseguem (des)organizar o programa de modo a aproximá-lo da vida, há sempre um certo artificialismo que paira no ar.

Mas de vez em quando acontecem coisas, entra um ar fresco por uma porta que se deixou aberta e acontece algo que traz uma nova qualidade ao ambiente que muda tudo. A essa qualidade chama-se autenticidade, verdade, a vida a acontecer.

Um dia, há pouco tempo, veio à aula um pai. Esse pai chama-se Leonel Santos e veio na qualidade de crítico de jazz conversar com os alunos sobre jazz e música barroca. Isto, remotamente derivado, mas a propósito, do Memorial do Convento. Barroco e jazz, tema e derivações, tema e improvisação. Instalou-se de armas e bagagens, digo com um monte de Cd, na aula, lá à frente, e falou. Falou, falou, de como se apaixonou pelo jazz, era ainda quase um menino. E de como vendeu todos os discos que tinha, para comprar discos de jazz, e de como, e de como, e de como… e depois falou da história do jazz, que é também, de certa forma, a história do racismo e da segregação na América. Falou do hibridismo, das influências folk, country, rock e até ciganas, falou da improvisação, que desde o início é uma das características fundamentais. Com paixão e clareza foi falando do swing, das orquestras só de brancos ou só de negros, porque outra coisa não era permitido, sendo que na maioria dos sítios onde se tocava eram os negros no palco e os brancos na plateia, também aí não se podiam misturar. Falou de quando a música de jazz deixou de ser inteiramente improvisada e passou a ter uma parte escrita e da importância que passou a ter a orquestração, e de como era na primeira parte ouvida, na segunda dançada. Era o tempo de Count Basie.

E houve um dia (ou vários) em que Benny Goodman se cansou do apartheid dentro das orquestras e começou a misturar músicos e raças.

Entretanto, surgiu o bebop, a primeira grande revolução do jazz que vai trazê-lo ao estatuto de música séria, ou erudita. É o tempo de Charlie Parker. Vem depois, com os anos 40, 50, 60, o Coldjazz, com Chet Baker, música mais calma, e nos anos 60, algo a que se chamou New Thing, o Free jazz. Era o tempo de Ornette Coleman, e o jazz estilhaçou (foi o termo que empregou) em todas as direcções: jazz rock, música concreta, luso-brasileira, árabe, uma confluência das mais variadas tendências num autêntico caldeirão de cultura.

Winton Marsalis vem, pelo seu lado, recuperar as origens do jazz, e começam a surgir novos standards a partir de música clássica, e chegando a Portugal nomeia-se António Pinho Vargas, Mário Laginha. Os autores barrocos são alguns dos recuperados para esta ponte entre géneros, entre origens, entre épocas. Por causa das variações a partir de um tema. Vai-se ouvindo alguma música, pelo meio da conversa, muito menos do que os imensos Cd deixaram inicialmente adivinhar. Mas mais não foi necessário, a conversa estava boa, e tudo tão claro que nem havia dúvidas.

Continuemos.

Os alunos estão imóveis, mas a imobilidade deles não é a do sono, apesar de ser a hora a seguir ao almoço, um momento sempre difícil para quem não está no lugar do professor, e ainda mais na Primavera.

Estão atentos. Genuinamente atentos. Algo de especial aconteceu ali. Goste-se ou não de jazz, ali aconteceu história viva, demonstração e paixão. Algo que virá a acontecer nas escolas de futuro. Sentimos como um arrepio na espinha, quando estamos perante um momento de verdade, de autenticidade na escola. E tudo isto por causa do Scarlatti, que o Saramago foi buscar à história da música e à outra, para ser professor da Infanta D. Maria Ana e vir tocar junto da passarola, assim curando Blimunda de estranha doença. Scarlatti nunca imaginaria que em 2009 alguém se serviria dele para os alunos ouvirem música barroca, deste modo tomando contacto com a estética sonora do século XVIII e que daí iria até Bach e de Bach até ao quarteto de Jacques Loussier, sob pretexto (que não é falso) de que como os barrocos e muito especificamente Bach, criou uma música baseada em tema e variações, uns séculos mais tarde uma música surgida a partir de uma origem que nada tinha de erudita, viria cimentar a sua estética em tema e improvisações, assim fazendo de Bach o primeiro músico de jazz. Avant la lettre. Foi por isto que um dos alunos disse lá detrás: O meu pai é crítico de jazz. E tudo o que já se contou pôde acontecer. Era este o desafio feito ao crítico: falar aos alunos sobre o jazz e a música barroca. Fez muito mais do que isso. Pegou neles como Saramago pega nos leitores e pelo caminho da paixão levou-os a passear pela história do jazz até à música contemporânea onde o jazz aparece temperado com Bach. A partir da geometria do coração.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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