2009-06-17


Risoleta C Pinto Pedro


Senhora dos Oceanos



“[…] Maria, quer dizer, Domina maris: Senhora do mar; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.[…]”

Faço minha a invocação, pelo atrevimento do tema. Que a Graça não me falte. Ámen.

Vem este excerto do Sermão de Santo António aos Peixes a propósito do recentemente celebrado (se o meu Borda d’Água não mente) dia de Santa Maria do Divino Coração e Dia dos Oceanos. Na antevéspera do dia de Portugal. Não me passou despercebida a analogia, quer a contida no excerto do “Imperador da Língua Portuguesa” entre a Senhora do Mar e o Senhor Mar, quer entre este dia duplamente mar (ia dizer mariano, mas tem conotações tão estado novo que quase me afoguei…), pelas águas do ventre divino e pelas águas do ventre da terra. Divina. Por que não?

Não deixa de ser curiosa a celebração de Maria e do Mar num mesmo dia mundial. Poderá não ser casual, ou talvez seja. Na hipótese (cada vez menos provável) de haver acasos.

Que nos diz? Que me diz a mim?

Que um ventre é um ventre. Tenha ele nome de mulher, de planeta ou de deusa. É sempre o mesmo ventre. O mesmo que dá a vida, o mesmo que pode afogá-la no excesso de água, e o mesmo que, pela salvação do afogamento, assim resgata o que esteve em riscos de tirar.

O ventre como um local de protecção, calor e abrigo é apenas uma parte de uma história muito mal contada. Ou incompletamente contada.

Porque sabemos da vida dos mares. E nós portugueses, que também este mês nos celebramos, bem o sabemos. Pela ancestral voz dos marinheiros, pela presente voz dos pescadores. Sabemos dos perigos das tempestades e dos naufrágios. Tão bem se naufraga num oceano como se naufraga num ventre Tão bem se navega num oceano como se navega num ventre. Olhem o olhar dos bebés quando chegam. Que vos parecem, senão náufragos que não ganharam para o susto, que ainda não se refizeram deste susto de chegar molhados e com frio, aterrorizados, a uma Terra estranha e hostil?

Valha-nos Maria na sua imensa experiência de domínio sobre os mares e a sua incomensurável Graça. Diria Vieira. Ámen. Digo eu.

Recordo-a aqui há menos de um mês sendo transportada pelo meio de um mar de gente. Vi-a pela televisão. Vagas e vagas de gente. Sufocante. Tive pena daquela pequena estátua de mar, tão desamparada no ar (diria… conformada?... impotente?... paciente?...) transportada aos ombros como um troféu. Com sacerdotes (homens, homens, muitos homens) ao fundo. Que percebem estes sacerdotes, estes homens, que sabem eles do Mar, que entendem eles de Maria para além do facto há muito esquecido de nela terem mergulhado, nadado, se terem afogado e finalmente se terem, ainda que provisoriamente… salvado? Constantemente a invocam, mas que sabem eles, realmente dela? Que sabem eles dessa Ísis, dessa Lua, dessa força que vem do fundo dos tempos e tem sido tão maltratada, tão ocultada, tão insultada e ferida? Ficou-me dessa imagem da pequena deusa feita de terra e símbolo de mar, uma paradoxal compaixão por Maria e por aquele mar. De pó adiado. Como a estátua. É só uma questão de… anos, de décadas. De séculos. Que é isso, senão um segundo?

E o Mar? E as Marias? E os dias mundiais de todas as coisas?

E, para não nomear tantas outras coisas, o petróleo derramado, esse insulto à divindade do mar? E à nossa terrena dignidade, tão vilipendiada? Salve(mos) nós Maria. Talvez tenha chegado o momento de salvarmos nós o mar da tragédia onde se afoga, e assim reabilitarmos para nós mesmos, o verdadeiro ventre. Reconfortante, suave e seguro.

Apesar dos sacerdotes dos indignos negócios e de todos os que dos palanques invocam Maria e matam (ou permitem que matem) o Mar. Estátuas de sal.

Ámen.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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