Risoleta C Pinto Pedro
O MAR ATINGE-NOS, de Maria Azenha
Como não se trata de um livro de poesia mas de um CD, não vou falar dos poemas, vou falar do que ouvi, do que não tendo lido, li.
Forma um todo que não sei se começa no poema, porque o poema sabia que a guitarra, digo, a sonoridade, existia. E a guitarra sempre soube da existência dos poemas. E das vozes. Mas esta voz não pretende rivalizar com a sonoridade das guitarras, não se chega à frente, é a guitarra que recua às vezes, outras vezes é a voz, passa pelos intervalos dos sons e a guitarra vai lendo a partitura no poema.
Foi a esses espaços que fui buscar o texto.
O mar atinge-nos começou por ser nome de blogue e agora de CD.
No blogue temos as palavras escritas, aqui as palavras ditas. E as guitarras: o silêncio é o que têm em comum a música e as palavras.
O primeiro poema dá o mote e o tom: mar, vento e memória, uma forma de caminho. Assim diz a voz. O tema são sempre as palavras, ou a poesia ou o silêncio.
Eu já conhecia alguma desta música dos poemas e das guitarras. Mas não os ouvira ainda juntos.
Alguns poemas são muito curtos, às vezes é a música que se cala para os ouvir, enquanto a voz vai falando sobre filhas e sobre mães, trevas e caos. Quase tudo é sinónimo de pedidos de socorro, e tudo é poesia.
Outras vezes é a voz que silencia para ouvir a guitarra, não estão em diálogo, estão em sintonia, são os dois lados de um mesmo todo.
Enquanto a voz decompõe as palavras, a guitarra decompõe os sons. Ambas são tristes. Não há como não dizê-lo. De uma tristeza plena e pena, assumida, confirmada, talvez porque reunida.
Alguns poemas mais longos são uma espécie de labirinto onde nos perdemos entre fala e fala; só de lá saímos seguindo o rasto da guitarra que se ouve ao longe de onde vem a luz, enquanto seguimos o caminho das formigas, das crianças e das árvores.
Tudo se passa na página, tudo se passa no lirismo, quase não se vê se não for o som elevando as aves, como pássaro, o concerto para voz serena e guitarras.
Todas as faixas falam, todas as faixas tangem, não há aqui vozes a solo. Às vezes a música corre e a voz deixa-a ir, pára, silencia, que é a melhor forma de perseguir.
Às vezes a fala fala sobre música, outras vezes a música quase fala como palavra, sem que o tenham combinado, sem que o tenham deliberado.
À medida que vai estando no tempo, a voz senta-se ao colo da música, e sente-se quase a música aconchegando a voz, baixando o som para que não acorde do sono.
A poesia apenas não é confessional pela transformação quase expressionista das imagens , que pelo excesso escondem o que tornaria insuportável a realidade. A guitarra dá um tom narrativo ao lirismo exposto das palavras.
A palavra sai da dor e entra-nos como dor. Talvez daí a música, como se quisesse dizer, tal como Magritte, “isto não é uma dor”, e no entanto nem todas as guitarras do mundo e muito menos a guitarra portuguesa conseguiriam dissimular esta realidade que no silêncio e no sussurro grita. E trina.
As imagens são cinestésicas, isto é, misturam constantemente sensações, juntando ao ouvir, a pele, o sabor, a cor e o ar.
É uma poesia que conta um mundo que se incendeia, que se afoga, que se agonia, que se esvai em sangue, que cega, mas também um mundo que ilumina, eleva, acena, e que voa.
Comum a todos, uma aura de mistério e uma imensa beleza, dolorosa beleza, menos dolorosa pela beleza a tornar-nos suportável a exposição da dor.
Termina com o mar, digo, com a mãe. E o som do mar. Aqui a guitarra cala-se e devolve cada som ao mar. Regressa mais para o meio do poema quando a mãe se transforma em estrela, ou partícula, ou asteróide, ou deusa, ou deus.
É então que o mar nos atinge e nos tinge de azul infinito.
Quando a própria dor se apaga em música e azul, porque uma mãe nasceu. De ventre de filha, ou de voz de poeta, no som da música, o lugar onde todos os milagres são possíveis.
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