Risoleta C Pinto Pedro
Para a futura história de uma bailarina
(No Auditório Municipal Eunice Muñoz, em Oeiras, realizou-se no passado dia 29 de Maio um evento, no Dia Mundial da Dança, onde a Amalgama, Companhia de Dança, apresentou o seu trabalho, juntamente com outras entidades e companhias, inserindo-se num ciclo de programas de homenagem à Dança e a personalidades na área da dança em Portugal, em que uma das homenageadas foi Alexandra Battaglia (Sandra Battaglia) co-fundadora da Amalgama Companhia de Dança. O evento foi da iniciativa e organização de António Laginha ( ex-bailarino, professor, escritor, critico de dança e director do Centro de Dança de Oeiras) em realização conjunta com a Câmara Municipal de Oeiras. O texto que se segue, de apresentação da bailarina, professora e coreógrafa Sandra Battaglia, foi por mim apresentado nesse evento):
Como todas as meninas da minha idade, sempre associei a dança a sapatilhas e a ballet. Mas depois cresce-se, e como sempre, a realidade é outra. Umas vezes é pior, outras melhor.
Neste caso, foi melhor. Aprendi com a Sandra Battaglia e com a Amalgama, que a dança é mais, maior e melhor que umas sapatilhas.
Conheci a Sandra pela mão da Amalgama, mais concretamente, pela mão de outro querido amigo Pedro Paz, com quem a Sandra Battaglia fundou a Amalgama.
Hoje olho-a como se a conhecesse desde sempre. A Sandra e a dança existem desde o princípio do meu universo de criança. Para além das sapatilhas.
Porque a dança que ela pratica, e experimenta, e divulga, e ensina, e teoriza e amplia, se também se dança em palcos e salões, é uma dança de terra, de pedra e asfalto. É sobre estes duros caminhos que a Sandra e os bailarinos da Amalgama elevam e enterram os pés descalços.
Ouvi uma vez contar à Maria João Pires, que expunha as suas mãos a todo o tipo de riscos, nunca as tratando com os cuidados ou as precauções que se esperaria. Assim faz esta coreógrafa, professora e bailarina e toda a companhia, da cabeça aos pés. Os pés dançam sobre pedra fria, sobre pedra bruta, sobre terra e ervas e paus e fogo e água. Literalmente. Sobre tudo o que é natural. Assim tem dançado e ensinado a dançar. Como se respira. Como quem se cura e assim cura. O convite à dança tem sido feito em aulas, workshops e coreografias a todos aqueles que estiveram desde sempre afastados da dança. Puseram cadeiras de rodas a dançar mais os seus ocupantes, e pessoas que mal se mexiam, crianças e professores nas escolas. Na preparação dos espectáculos da Amalgama, enquanto se cria, todos dançam: o bailarino, o músico, o actor, o artista plástico, o escritor, o cantor. Tem sido uma constante; esta equipa multidisciplinar em que a voz falada ou cantada está sempre presente, e a literatura, o vídeo, a música criada de raiz ao mesmo tempo da coreografia, e a vertente das artes plásticas, a vertente pedagógica e formativa. A dança como aliança ou abraço, entre as artes e a vida.
Falo preferencialmente sobre o percurso dos últimos oito ou nove anos, porque é desses que tenho um conhecimento directo.
Antes disso, sei que a Sandra Battaglia fez todo um percurso académico, com muitos intervalos cheios pelo meio, em que se foi dedicando a projectos comunitários, criação de estruturas, formações mais ou menos paralelas.
O currículo é impressionante e nem tento dar conta dele aqui, porque só tenho oito minutos. É um currículo que passa pelos melhores palcos, pelos melhores professores, pela interpretação, criação de companhias e projectos, formação, pedagogia, coreografias. Prefiro dar conta do meu sentir esta intérprete/ criadora.
Para mim, este caminho com a Sandra Battaglia tem início com o projecto Amalgama.
Espectáculos como Viagens de Luar, Vitriol, Mutações, Venite, Mater, A Alegria das Rosas. Para todos estes não só escrevi como em alguns acompanhei a criação e por vezes até a concretização, mas há muitos outros, de que cito alguns como Arcana, Aestaesis, Singular, Reino dos Seres Imaginários, desde que escrevi para o primeiro espectáculo, Viagens de Luar, com um pequeníssimo poema, até aos outros onde os textos se foram expandindo, com destaque para o Venite in Silentio, que é ao mesmo tempo uma coreografia e um livro, onde o espectáculo e o romance cresceram juntos e juntos vieram à luz. O espectáculo coreografou o romance e o romance ficcionou a coreografia. Enquanto os músicos compunham, e os cenógrafos projectavam, e as vozes se preparavam. Poderá haver, mas não conheço outros projectos com esta abertura, estes quase saltos no escuro do desconhecido. Estes espectáculos foram acontecendo por vários sítios, mas o regaço foi durante muito tempo o Hotel Convento de S. Paulo, com incursões por outros espaços simbólicos e sagrados, como O Convento de Cristo em Tomar, o Convento de S. Francisco em Estremoz, o Palácio da Pena, a Quinta da Regaleira ou o Palácio Nacional de Mafra. De salientar, também, o amigável abraço dançado com o compositor Jorge Salgueiro, a partir de uma canção com poema meu e música deste compositor, que o JS acabou por ampliar assim, a partir da canção que já existia criando a música para toda uma coreografia da Amalgama de que hoje aqui veremos uma parte. Da canção à dança, da dança à música, da música à dança. E foi o espectáculo que de Conquista-me passou a Mater, o das espadas transfiguradas. Desde o Vitriol que a arte da Alquimia, essa arte de todas as transformações, ficou a destilar no sangue da Sandra e da Amalgama.
É a Amalgama que continuo a citar, porque durante estes anos em que acompanhei a Sandra Battaglia, foi essencialmente no seio da Amalgama que se produziu o trabalho dela, como bailarina, formadora e criadora/coreógrafa. E também cada vez mais teorizadora daquilo que durante o percurso foi surgindo. Não me espanta que o mestrado, hoje, esteja a ser a natural reflexão sobre tudo o que tem vindo a experimentar. E matéria não lhe falta.
O seu percurso é ao mesmo tempo académico, canónico e não canónico, porque se a formação é clássica, o inconformismo tem-na acompanhado, assumindo uma forma activa e criativa, e os cruzamentos têm sido muitos: outros olhares sobre a dança, sobre os corpos, sobre o processo de criação coreográfica, a ligação às artes marciais, às outras danças, como por exemplo o flamenco e a dança indiana, a dança terapêutica, a dança símbolo. Na dança dos corpos, a busca da alma. Dos que têm sido chamados bailarinos e daqueles outros a quem a dança tem sido roubada desde sempre. Tudo isto faz sem se esquecer de dançar, de coreografar, pelo contrário, fazendo-o sempre, mas uma das tarefas que se atribuiu foi a restituição da dignidade e dos direitos aos que têm sido privados de partes da própria alma que a dança lhes pode dar.
Paralelamente, tem vindo a coreografar e a dançar, óperas para a Orquestra do Norte.
As sapatilhas que nunca a vi usar, mesmo não as usando estão rotas de tanto dançar, de tanto viajar. Os pés compadecem-se delas e erguem-se na pele. Que nunca se rompe. Porque beijam reverentes o chão que pisa e de onde se eleva.
Sinto-me hoje grata por poder manifestar aqui, perante vós, o meu reconhecimento à Sandra Battaglia por ter entrado no meu mundo descalça, a dançar, assim o transformando. Para melhor.
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
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