2009-04-29


Risoleta C Pinto Pedro


Reflexão e balanço para a apresentação de um livro

A propósito de O Pecado do Vagabundo



(Publico este texto do lançamento de um livro meu, a pedido de alguns amigos que tendo-o ouvido, gostariam de o ter/ler, e de outros que não tendo podido estar, igualmente o querem conhecer.)

Se não contar as colectâneas de contos em que participei com outros autores , se não contar ainda um livro escrito a quatro mãos com a minha querida amiga Raquel Gonçalves, e as bandas desenhadas de uma ópera e uma cantata com o compositor Jorge Salgueiro em que o texto é o meu libreto, se não tiver em conta as dezenas e dezenas de poemas e crónicas que escrevi ao longo destes anos, se tiver apenas em conta os livros de ficção publicados exclusivamente meus, se é que isso existe (e claro que não existe, é apenas uma forma de falar), este é o meu sétimo livro. Ao todo passam de catorze. Mas assim, são sete. Apercebi-me disso ontem. Desde 1995, quando foi publicado o primeiro, há catorze anos. Este é o mais pequenino e no entanto é o que nasceu mais velho. Porque este livro é uma espécie de filho que foi preciso ir buscar ao ventre da mãe; nesse sentido, é, de certo modo, uma salvação. Como têm sido todos. Mas este em especial. Porque se os outros livros me vieram salvar a mim, este livro vem salvar outro livro.

Conheço o Carlos Garcia, editor da Padrões Culturais, há já um número considerável de anos, e há já uns anos que o ouço comentar a pouca divulgação e distribuição do meu livro O Aniversário, que foi o prémio Revelação da APE. De facto a distribuição não foi famosa e o livro não foi suficientemente visível. Então o Carlos Garcia, que já há anos “ameaçava” publicá-lo, resolveu agora incluir, não todo o livro, mas a parte final, que ele considera, e eu estou de acordo com ele, com capacidade para viver autonomamente, na colecção “Textos Extraordinários” da sua editora. Portanto, esta criança que acaba de nascer faz-me lembrar aqueles bebés que por vezes encontramos, que quando os olhamos ficamos quase intimidados porque não parecem bebés, mas gente que já viveu muito, adultos muito perspicazes que nos perscrutam impressionantemente com um olhar agudo como se nos conhecessem melhor do que nós mesmos.

E de facto, quando abri o livro e me preparava para ler o prefácio, tive uma estranha sensação, porque o António Bento, que eu não conheço, e que além de escritor é médico psiquiatra, escolheu para epígrafe do seu texto os excertos que eu escolheria, dois autores que constantemente cito a propósito disto e daquilo, sendo um deles o pintor Magritte, e o segundo pertence a um dos livros que desde sempre mais profundamente me tocaram: Os cadernos de Malte Lauridge Bridge, de Rainer Maria Rilke. Como se não bastasse, começa o seu texto com palavras minhas, isto é, com palavras que poderiam ser minhas. Aconteceu-me uma vez uma coisa estranha com um trabalho de uma amiga; ao começar a ler a epígrafe do trabalho, ter a estranha sensação de já ter lido aquilo nalgum sítio, de conhecer muito bem aquele texto. E só quando cheguei ao fim me apercebi que se tratava de um excerto de O Arquitecto, um livro meu que acabara na altura de ser publicado.

A um amigo meu pintor aconteceu-lhe também entrar em casa de alguém e ao olhar para uma pintura dele que lá estava numa parede, ter a estranha sensação de conhecer muito bem aquele quadro sem o reconhecer como obra sua. Isto levar-nos-ia a outras questões, mas vem ao caso para explicar que quando comecei a ler o prefácio e o senti tão familiar, a tentação, face à experiência anterior, foi colocar a hipótese de o texto ser mesmo meu. Mas eu não me chamo António Bento, embora António Bento tenha misteriosamente ido buscar ao mesmo sítio onde eu iria, as palavras para começar a falar deste livro. Significa que o leu profundamente, tão profundamente como eu o escrevi, tão profundamente o escrevi que nunca verdadeiramente o li. Escrevi-o profundamente mas li-o sempre superficialmente. Descobri-o agora pela mão da criança precoce que é este livro acabado de editar. Ora isso não podia continuar a acontecer muito mais tempo, o mundo exige sempre uma justiça e os livros também.

E é isso que rejuvenesce este livro que nasceu adulto. Um olhar ao mesmo tempo interior, mas fresco, sobre o texto. Era dessa frescura de olhar que eu leitora do meu livro, necessitava. Prosseguindo a leitura do prefácio, quando começa a empregar um vocabulário como “filósofos fenomenologistas” António Bento distancia-se, com a linguagem técnica que nele se compreende, do que poderia ser a minha linguagem sobre este livro. E depois fala de Freud, e de pulsão de morte, e empurra-me maravilhosa e brutalmente para dentro do livro, do outro, daquele que eu quis esquecer, mas que o Carlos Garcia não deixou e o António Bento também não. Atiraram-me para dentro das dores que estavam dentro daquele outro livro há tantos anos e que eu não sabia: primeiro, porque não eram suportáveis, segundo porque não tinha ainda capacidade para as suportar. Não é por acaso que este livrinho vem novamente abrir a porta para eu espreitar, passados 11 anos da publicação do outro, e aparentemente de forma anacrónica, num momento em que faço a revisão de outros dois livros. Não é por acaso que tudo isto acontece, embora o mistério não seja desvendável nem explicável. Talvez apenas agora eu possa voltar a ler verdadeiramente o livro mãe, que o filho vive por si. Num momento em que, citando uma história clínica de uma criança, contada pelo doutor João dos Santos: “Agora eu já posso imaginar que faço”. Nesta caso, “Agora eu já posso imaginar que leio.”

Vejo agora o livro mãe como o livro que eu preciso de ler, vejo este recém-nascido como o livro que pode ir aí pelo mundo para ser lido por ele. Foi este prefácio que me mostrou coisas que eu escrevi no primeiro livro e não sabia. Brutais, violentas, e hoje impensáveis.

Mas escrevi-as e não há forma de o negar. Embora eu as tenha ignorado durante onze anos. Espanta-me também que António Bento tenha ido buscar, incisivamente, para o seu prefácio, aquilo que poderíamos designar, se quisermos especular, como o lado mágico da escrita. Porque escrevi eu no final de O Aniversário: “Sílvia não fecha a porta para tornar irreversível o gesto de sair”. Assim não fechei eu a porta daquele outro livro, tornando assim possível o gesto de o salvar; com este.

Percebi todas estas coisas pela mão do prefaciador que não conheço, numa consulta que não encomendei, a revelação que não sonhava, a salvação que desejei e não esperei.

E eu que intimamente e quase sem o reconhecer para mim mesma, sempre guardei algum cepticismo perante a reedição de um livro já publicado, senti-me profundamente grata pela nascença deste novo livro, uma nova leitura editorial rejuvenescedora que traz à luz em estado de semente, talvez uma nova história. Apesar de eu não lhe ter acrescentado uma palavra.

É este o lado surpreendente da escrita, da criação em geral. Nunca sabemos, quando criamos algo, que mundos, que mecanismos estamos a accionar. Mecanismos de que apenas nos aperceberemos muito mais tarde. Por isso encaro cada vez com mais responsabilidade aquilo que escrevo. Um livro é um mundo novo, um mundo novo que se multiplica exponencialmente, e não há como nos descartarmos da responsabilidade que isso implica. Isto transporta-me até um artigo de jornal que li nesta Páscoa trazido por mão amiga, onde se fala de John Lehrer, um jovem génio, cientista da equipa de Eric Kandel, prémio Nobel da Medicina 2000.

Quero ler o livro dele que ainda não li. Porque, segundo apurei, o livro dele, sem que me conheça, sem sequer suspeitar da minha existência, , fala deste meu livro, e de certo modo de todos os outros.

E que diz, segundo o artigo, esse livro intitulado A mente de Proust numa madalena?

Que , e cito:” as nossas impressões exigem uma interpretação. Olhar é criar o que vemos.”

A neurociência recente vem dar razão ao que, de certo modo místicos de todos os tempos foram repetindo, e filósofos de quando o saber ainda não estava espartilhado, também. E que alguns artistas ou criadores em geral sempre souberam.

Dizem as últimas descobertas que o olho apanha apenas borrões de cor indistinta, que é o cérebro que cria a realidade por interpretação das linhas de luz. Este livro O Pecado do vagabundo oferece-me agora uma nova oportunidade de reinterpretar a realidade que criei, e de voltar a criar novos mundos, como sempre fiz, mas agora mais conformes às minhas células.

O que está escrito é apenas um borrão de tinta de cor indistinta, cabe-me a mim, cabe a cada um dos leitores lê-lo pelas linhas de luz, que entre as trevas é sempre mais fácil de reconhecer.

Se aceitamos as trevas estamos prontos para a luz.

Agradeço a Carlos Garcia por esta iniciativa: este quase capricho que transportou tantos anos com ele, esta edição e este título. Que é dele. E que eu agradeço, qualquer um dos que me ocorreram não lhe chegou aos calcanhares. Este é, sem dúvida, o título deste livro.

Agradeço á Cláudia todo o amável apoio nesta fase final de todo o processo.

Agradeço ao António Bento por ter ido buscar às trevas a possibilidade da minha releitura e por me ter ajudado a aprofundar a luz, assim tornando conhecido o que era preciso reconhecer.

À Ana Vinagre, que é um sol procurando ser discreto, mas cujo brilho não é possível disfarçar, como se verá pela leitura. Igualmente pela generosidade da disponibilidade para a leitura a dois, ao Pedro Albuquerque. À Fnac por este colo, hoje , aqui.

A todos os que aqui estão e também os que não puderam estar. Familiares, amigos e leitores, pela vossa companhia nesta nossa caminhada pelas trevas luz nas linhas dos livros. De facto, segundo a interpretação que faço de John Leher, e como venho cada vez mais a acreditar, são os leitores os mais importantes criadores de um livro. O livro, como disse, é só um borrão de tinta, é o leitor que o interpreta e recriando-o, verdadeiramente o cria. Infinitas vezes. Das trevas para a luz. Tenho dito.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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