Risoleta Pinto Pedro
Uma crónica interseccionista
Helena fala-me sobre um artigo de um jornalista chamado Rui Tavares acerca do fenómeno Barak Obama. Este texto incide, entre outras coisas, sobre as reacções da multidão que ouviu o seu discurso, nomeadamente alguns pormenores observados pelo articulista: os fenómenos das motivações, dos jornais, as implicações e paradoxais reflexões a propósito do caso. A certa altura, Helena cita de memória uma expressão que nitidamente a impressionou, pela ausência de recurso ao papel, pelo tom, pela expressão. Mas não teria sido necessário nenhum desses sinais. Bastar-me-ia ter ouvido neutramente, ou ter lido:
“As coisas grandes mudam lentamente […] são assim as nuvens, as economias […]”
… para me ter acontecido o que aconteceu:
Um fenómeno de teletransporte em que vertiginosamente como uma pequena nuvem corri pelo céu da minha memória até à relva do quintal e ali fiquei não sei quanto tempo. Ainda lá estou. E tal como nos poemas interseccionistas de Pessoa, na minha memória cruzam-se vários quintais desse passado e de hoje, e cenas desse além mas também de agora, mas procuro afastar da tela as que não me provocam saudade, ficando a sós com o limoeiro carregado de limões, uns maduríssimos e outros verdes e também flores maravilhosamente perfumadas de promessas de limões, e uma lúcia-lima com aroma de céu, e … não necessito de mais nada para estar lá. Sob o meu corpo a erva selvagem, na pele o sol que só não caracterizo como carícia para fugir ao lugar-comum, mas que não deixa de ser verdade, e por cima dos meus olhos céu, e céu e mais céu, azul, e azul e mais azul, infinito, e infinito e mais infinito. Mas eis que um corpo se ergue pelo meio do azul, do céu e do infinito. Uma grande, grande, quase infinita nuvem. Desloca-se enervantemente devagar, cobre-me o meu sol, descobre-me o corpo, retira-me a manta de calor e deixa-me desabrigada até ao infinito. Quero que ela se mexa depressa, que saia dali já!, a pequena nuvem impaciente que eu sou regressa agora a vertiginosa velocidade novamente até junto de Helena, na esplanada banhada pelo sol onde agora se está melhor do que sobre a relva do quintal ainda sob a grande nuvem imponente e lenta, e considero este jornalista que não conheço, mas que de certeza esteve em algum dia deitado sobre a relva do quintal esperando impaciente a passagem de uma enervante nuvem pastel entre si e o sol. Só porque vivemos isso quando éramos crianças, só porque as grandes nuvens lentas nos proporcionaram a aprendizagem da lentidão, condescendemos agora com estas economias em mil lentas agonias. Do lado de onde costumavam vir as trovoadas brilha agora um pequeno, ainda quase obscuro mas ousado sol e nós sabemos que afinal a luz existe e está dentro de nós porque ele nos comove, e nós só nos comovemos com aquilo que conseguimos sentir, com aquilo que conhecemos. Esse sentimento é tão reconfortante que quase nos comovemos com a beleza da imagem das nuvens lentas e das economias explicadas às crianças como insistem em continuar a tratar-nos não nos deixando que delas continuemos a ser o melhor. Suportamos tudo isto porque houve e há infância e nuvens grandes e pequenas e sabemos que estas economias lentas um dia vão ser apenas uma recordação de histórias para “totós”.
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
|