2008-12-03
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


"Tive um sonho..."

Foi assim que começou a conversa nessa manhã.

Helena e Eulália costumam encontrar-se numa das manhãs do fim-de-semana junto ao rio. E contam-se os sonhos.

- Eu era uma viajante…

- Tu?!

- De mochila…

- Ah…

Helena e Eulália conhecem-se bem…

- Andava de país em país. Em cada país por onde passava recolhia um objecto, um sonho ou uma recordação.

- Na mochila…

- Sim, na mochila.

- As recordações pesam muito…

- Mais do que os sonhos…

- Mais do que os objectos.

- Mais do que certos objectos. Aqueles que para além de objectos são também recordações, pesam duplamente. Ou triplamente.

- Ou mais. Mas então?...

- Então, já ia com a mochila um bocado carregada. Quando cheguei ao País do rio…

- Onde fica isso?

- No sonho. Este país era só um rio, era um único rio, era unicamente um rio.

- E as margens?

Havia uma margem; na margem estava eu. Era o rio e a margem. Eu já ia muito cansada, a mochila estava pesadíssima. Fiquei contente porque naquele país não havia nada que pudesse recolher. Nem um sonho, nem uma recordação, tudo fluía pelo rio abaixo, não era possível captar nem capturar nada. Nem animal, nem imagem, nem seixo, nem mesmo recordação.

- E um sonho?

- O sonho era eu. Entretanto, saiu do rio um homem.

- Ah, isto começa a ficar interessante. Como era???

- Lindo, um misto do filho mais amado, do amante mais querido, do pai mais adorado.

- Idade?

- Jovem, idoso, não te sei dizer. Sem idade. Convidou-me a depositar a mochila no chão. Obedeci, sem hesitar. Faria fosse o que fosse que me dissesse, e livrar-me daquele peso era absolutamente inquestionável. Pediu-me que abrisse a mochila…

- Grande lata!

- É um sonho!

- Ah, é verdade, continua.

- Depois convidou-me a tirar tudo para fora. Demorei imenso tempo, e depois ficámos os dois a olhar aquelas coisas, ali sentados na margem do rio. Parecia-me tudo tão inútil!...

- E ele? Como era ele?!

- Já te disse…

- Fiquei sem saber nada…

- Ah, espera, tinha uma espécie de arco-íris dourado pintado na testa…

- Coisa mais bizarra!

- É um sonho…

- É verdade, continua.

- Convidou-me a deixar ali as coisas…

- Espertalhão!…

- Helena!...

- É verdade, desculpa, é um sonho. Mesmo assim, a aproveitar-se de uma sonhadora…

- Mas ele também...!

- Ok!, eu calo-me.

- Assim fiz, deixei lá tudo. Fechei a mochila…

- Vazia?

- Quase…

- Ah, conta!…

- Guardei lá a única imagem que consegui recolher naquele sítio…

- Diz…!

- A imagem dele. Quando me levantei com a mochila levíssima às costas ele já estava a entrar no rio com toda a tralha que eu deixara.

- Logo vi! E tu?

- Saí do país, prossegui a viagem, mas mesmo à saída encontrei outro viajante que me disse que todos os que passavam por ali encontravam o tal homem. Que afinal não era um homem… comum.

- Então?! Conta!

- Era um anjo…

- Que anjo?! Anjos há muitos...

- Este era o meu, o anjo dos sonhos, o anjo do arco-íris, um homem anjo.

- Ok, já percebi.

- Já?!

- Passaste-te completamente. Até logo, as melhoras.



Virou-lhe as costas e a outra ficou a vê-la a afastar-se lentamente com a sua mochila, carregadíssima. A que ficou pediu em silêncio ao anjo que lhe pusesse um rio à frente. Num sonho qualquer. Não voltaram a ver-se, desde esse dia. Quanto a mim, narradora, fiquei sem saber quem ficou, se Eulália se Helena, quem partiu, se Helena, se Eulália. Mas talvez isso seja o menos importante de tudo.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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