Risoleta Pinto Pedro
A falta que nos faz o símbolo
“Une lumière dorée brille sans fin
tout au bout du chemin”
Les choristes
Andávamos em bandos pelas ruas e batíamos às portas. Quase todas se nos abriam (não tenho memória de uma porta fechada) e davam-nos nozes, figos secos, rebuçados, às vezes dinheiro, o que menos apreciávamos. Não éramos sem-abrigo, todos tínhamos as nossas casas, as nossas famílias, e em casa tínhamos tudo isso que andávamos a pedir às portas: o “pão por Deus”, a tradição desse dia primeiro de Novembro, ou “de todos os santos”. Sem o sabermos, imitávamos todos os pobres santos de todos os tempos que se arrastaram pelos caminhos com as mãos estendidas, imitávamos outra eterna criança, Jesus pelos caminhos seguido dos discípulos, imitávamos todos os sábios da índia de quem nunca tínhamos ouvido falar, esses que se põem às beiras dos caminhos em meditação yogue, esperando que aconteça o que acontece: que alguém os alimente, porque todos aí se sentem responsáveis pelos que optam por não fazer parte dos ruídos do mundo. Também quando tínhamos seis, sete, oito, nove anos e nos levantávamos cedo nessa manhã do ano em que nos reuníamos como pedintes e com os nossos sacos de pano bordados batíamos às portas, toda a comunidade se responsabilizava por nós e nos enchia os sacos do melhor que tinha. Não sabíamos o que fazíamos, nem por que o fazíamos, apenas porque era tradição e todas as crianças antes de nós já o haviam feito. As crianças batiam às portas e as portas abriam-se. A comunidade vivia pelo menos por um dia a responsabilidade pelo sustento e felicidade das suas crianças. Hoje, vemos uma criança pedindo na rua e indignamo-nos, porque o estado permite que isto aconteça, porque os pais estão a usá-la, esses que deviam responsabilizar-se por ela usam-na para o próprio sustento. O que não deixa de ser verdade, mas… e nós? E a comunidade? A comunidade é só o governo? Custa muito abrir a porta do nosso coração a uma criança? Como se sentirá a nossa criança antiga que ainda lá habita vendo-se assim encerrada, com uma porta entre ela e a outra lá fora que suplica, sem um saco bordado, mas com uma mão suja, o “pão por Deus”? Sartre disse que Deus morreu, e não há dúvida que sim, mas fomos todos nós que o matámos. O assassinato deu-se, vai-se dando dentro de cada um de nós, a cada dia. Falta fazer-se a ressurreição. Dentro de cada um de nós, a cada dia. Enquanto houver uma criança no mundo de mão estendida o trabalho de ressurreição não está terminado.
É por isso que nos faz falta o símbolo. Matámos Deus, matámos os símbolos, matámos a nossa criança antiga. Não vamos longe, assim. É preciso reabilitar o símbolo, embalar o pequeno Deus no colo, abrir as portas do coração à criança antiga, que é a criança de todos os tempos. Talvez assim nos salvemos. E ao planeta.
Os meninos que nós éramos quando batíamos às portas, dizíamos “Pão, por Deus!”. Os deuses éramos nós e recebíamos as dádivas que nos eram devidas. Que nunca deixaram nem deixarão de o ser. E essa é uma certeza. Só falta fazermos a nossa parte. Ressuscitar Deus, digo, a criança (como queiram, vai dar ao mesmo) e oferecer-lhe nozes. É tão simples…
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