2008-10-22
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


Crónica sobre um livro que ainda não li



Ligo acidentalmente a televisão e assisto a um momento de amor. Um daqueles raros momentos que justificam todos os outros em que ficámos imbecilmente a olhar para o espectáculo da mentecapta pobreza moral.

Mário Crespo entrevistava António Lobo Antunes. Primeiro achei estranho, porque comecei por supor que seria a propósito do novo Nobel da Literatura, mas não estava a imaginar Lobo Antunes a deslocar-se à televisão para isso. Afinal era a propósito do último livro dele, O Arquipélago da Insónia, mas apenas, percebi depois, como pretexto para falar da vida, da morte, da dor e da alegria. Algumas pessoas sabem envelhecer. Essas são as que ousam percorrer os corredores escuros do interior de si, os que afastam os fantasmas ou passam pelo meio deles e se adentram nos horrores e nos medos. Mário Crespo mostrou-se um leitor apaixonado, daqueles que se deixam cativar e tocar, comover e transformar. António Lobo Antunes mostrou-se um escritor transformado: aquele que se dá e nesse mesmo dar-se liberta e se liberta. Falava como se estivesse a sair dum sonho ou à beira da morte. Mário Crespo interrogava-o como se estivesse a sair da morte ou à beira de um sonho. Estavam comovidos e foram comoventes. Eu estava lá, no meio deles, mas não falava. A boca semi-aberta de espanto. “Isto é mesmo a televisão?” Como se fosse um sonho, sentei-me, um gato saltou para o meu colo e outro sentou-se aos meus pés. Lobo Antunes dizia “… como se o sonho fosse a única realidade possível…”. E mais à frente (ou teria sido antes?): “morremos inocentes e ignorantes como nascemos”. E no entanto, acrescentava, é imperioso que entremos dentro de nós. Para encontrarmos as nossas… perguntas. Se um dia encontrarmos as respostas, diz ele, Deus muda-nos as perguntas. Fala em Deus sem pudor. Soa natural, na boca dele. Soa mesmo a uma evidência. E fala do pai. Do pai físico, como sendo uma espécie de guarda que nos defende da morte. Morto o pai, já nada se interpõe entre nós e ela, a defender-nos. A voz dele vem de muito fundo, umas vezes parece um menino com um sorriso tímido, outras, um homem que já fez uma longa caminhada e está muito cansado. Os dois homens falam de coração para coração. Com um desvio pelos nossos corações, onde nos tocam. Falam de afectos e falam do afecto mútuo que os liga. Vão mais longe, e dizem-se: “eu gosto de si… muito!”. Não dizem: “tenho-o em grande estima e respeito” ou qualquer coisa assim, Dizem: “Eu gosto muito de si”.

Depois de uma coisa destas, uma epifania assim, que importância tem a crise?





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