Risoleta Pinto Pedro
O CÉU DENTRO DA BOCA, de Paulo Condessa
(Relatório de uma leitura)
Dele lera Bizz Dizz, um livro escrito na linguagem de pássaros jovens.
O Céu dentro da Boca é um livro que tanto pode ter sido escrito por pássaros sábios como por um extra-terrestre que, aqui chegado, e experimentando um corpo igual ao nosso neste bizarro mundo físico, pedisse a linguagem emprestada a uma criança para dizer a estranheza.
Falarei deste livro como a criança que fui e em que me vou retornando, o faria. Porque foi como criança, como criança umas vezes espantada, outras nem tanto, que o li. Nunca lera um livro de poesia assim. Não fui eu que quis. Foi ele, o livro, que me obrigou.
Se você que me está a ler quiser ler um livro de poesia mas estiver indeciso, leia este. Se quiser oferecer um livro de poesia, ofereça este. Se estiver indeciso entre um romance e este livro de poesia, escolha este. Se lhe oferecerem este livro leia-o de imediato porque as palavras estão vivas e as páginas tremem.
Se ninguém lhe oferecer este livro de poesia, ofereça-o a si próprio. Comece por este.
Recebi-o há uns meses. Abri-o, provei o recheio e reconheci neste o mesmo de um bolo delicioso da minha infância, um daqueles bolos mágicos que não esquecemos e raramente reencontramos. Fiz o que fazia em pequena: saboreei à volta e adiei o prazer do melhor bocado, aquele que tem a cereja. Avara, guardei-o para depois, para um dia de chuva e de longe de mim. Assim fiz com este livro.
Agora que lá voltei, aprendi, ou confirmei o que já aprendera, a comer de imediato sem adiar o doce mais doce. Se não se comer o resto não é grave, mas a parte da cereja, o doce dos doces, é para fruir.
Na página 11 fiz a primeira paragem. Quando cheguei à “caixa metálica com a forma de um coração” transportei-me de imediato para a tortilha que comera ao almoço onde mão invisível de cozinheiro desenhara, certamente sem o saber, um minúsculo coração. Minutos antes eu pedira ajuda. Deve pedir-se ajuda. Não sabia bem a quem, nem porquê, nem para quê. Mas pedira-a, uma ajuda indiscriminada, mas sincera. E a ajuda veio, primeiro numa tortilha, depois num livro de poemas.
A linguagem deste livro remete-me constantemente para dentro do corpo, que como toda a gente sabe, ou pelo menos as crianças, essas que ainda são pessoas, é no mesmo sítio do dentro da alma. A prová-lo o autor: “os pontos cardeais descolam do cérebro”.
E é o cérebro que é preciso desligar para se conseguir receber esta poesia.
Por outro lado, o colo com que acolho estas palavras é o de um absoluto silêncio. Cada palavra é essencial, cada segmento de frase o é, também o é cada verso, cada estrofe, não existe aqui nada que não seja sangue ou estrela, mesmo quando se fala de objectos do quotidiano.
Na página 27 pensei o que já sentira nas anteriores, mas aqui detive-me para escrever o pensamento: quando estiver triste ou perdida, venho ler este livro, pensando melhor, guardo um bocadinho da cereja. Foi então que os olhos me correram sozinhos até ao final da página, onde li: “murmuro devagarinho/aqui me tens”. E fiquei descansada.
Na página 29, sob o risco de pensarem que exagero, afirmo: este livro está entre os melhores de poesia que li. Só não o escrevi na primeira página porque o Paulo Condessa é meu amigo e temos esta atávica desconfiança quando a sorte nos bafeja: é que conheço, como amigos, mais uns quantos excelentes poetas, que embora não cheguem à meia dúzia (os excelentes), são em número suficiente para me despertar um sentimento de estranheza. Pelo privilégio de pertencerem ao meu mundo. Não fora o facto de ser a criança a escrever estas linhas e não me atreveria a afirmá-lo. Mas a coragem não chega para que revele os nomes, é que ainda vou na página 29, estou, portanto ainda relativamente sóbria, fica este poeta como símbolo dos que não nomeio.
Para além disso li este livro como criança, não sei o que diria a adulta desta poesia. Confesso que também não lhe perguntei.
Às vezes faz-me rir, o livro, tal como me faz rir o amigo. No caso do livro, corrijo para sorrir, melhor dizendo, a menina em mim:
“Navego nas sombras como se pastasse/nos campos daquele poeta que guardava/os sonhos escondidos na lã do rebanho// Cada vez que preciso consultar os astros/lá vai uma ovelha para a tosquia”
Mas logo a seguir, quase pelas mesmas razões, quase com as mesmas palavras, quase me faz chorar:
“Mas o tempo é duro, as meninas do céu/sem lanzinhas fiam com frio, contraem-se”
Este poema, clara e assumidamente inspirado em Caeiro faz-me obviamente lembrar o pastor da poesia. Mas eu não sou Caeiro; a Caeiro, este poema não lhe lembraria nada. Ficaria só a lê-lo e depois iria ter com o seu rebanho. Ou escrever um poema. O que para ele era a mesma coisa.
Na página 43 pensei: “este livro devia ser mais pequeno”, esmaga-me de beleza e de surpresa. Não sei se tenho estrutura para tanta poesia. A sério. Mas se não tenho, arranjo. Prossigo.
Na página 53 penso que o mundo nunca mais vai ser igual, porque todos os objectos se transformam, muito mais do que acontece no mundo de Alice, onde apesar de tudo a realidade ainda mantinha alguma semelhança com a realidade. A transformação é tal, a transfiguração é tanta, que o meu olhar já vai antecipando a leitura das palavras futuras. Às vezes acerta.
A meio do livro preciso de fazer algo inédito com que comemorar esta extraordinária experiência de leitura. Não estou em casa. Abro a mochila. Encontro lá dentro um limão que me tinham oferecido. Como-o. É a resposta poética do meu corpo perante o intenso sabor das palavras. Digo mais: convém trazer um limão no bolso (ou uma laranja, ou meia dúzia de maçãs) enquanto se anda a ler este livro. Às vezes não se consegue prosseguir, mas também não se consegue parar, e a encruzilhada é impossível.
Porque lá à frente, novamente o espanto: é que fala de coisas… que só eu sei! Que, pensava eu, só eu sabia!:
“uma espécie de flor com asas/a bater dentro do corpo// faz aquele som brbrbr/ternura imensa, tremeliques/de carinho assustado”
Na página 77 concluo: “Já não preciso de mais”. Mas passo a página. E prossigo a viagem por dentro das coisas, por dentro do corpo, com um olhar novo, para melhor conhecer a alma. Assim vou virando páginas e páginas da melhor poesia. Também poderia dizer isto assim: “páginas e páginas da melhor recordação da infância”, quando eu andava pelo mundo pela milionésima vez, como se fosse a primeira vez, dando nomes às coisas e sentindo-as pela milionésima vez como se fosse a primeira vez. Assim vendo o que um olhar habituado já não vê: a pérola da ostra.
Assim vai este poeta criança autor de poemas para adultos crianças, mas não deixando de ser o poeta a lembrar como via o mundo antes de ser grande e poeta. Aqui, a poesia não é um exercício de estilo, mas um exercício de vida. A vontade que dá é de rezar para que não cresça.
Fiquei assim a rezar até à página 159. Depois fui viver um bocado.
E voltei. Com uma interrogação. Onde teve ele tempo nesta vida para correr e agarrar e segurar tantas palavras? Não há explicação para isto. A não ser que crie uma palavra a cada inspiração e outra a cada expiração. Assim começo a preparar-me para muito mais livros assim, que devem estar-lhe já à saída dos pulmões, como uma poesia galáctica aqui acabada de aterrar, ou ventral como o desenrolar do caudal de um corpo, e inocente como um animal, misteriosa como a oração de um místico, impossível como o inocente discurso de um louco, esperançosa como os olhos de um bebé acabado de nascer.
Algumas páginas têm uns números muito compridos em algarismos muito pequenos, misteriosos, no canto superior direito. Não faço ideia o que significam, até podem representar apenas o número de caracteres até aí registados, mas o contexto com que convivem torna estes algarismos absolutamente poéticos. Tão poéticos como um soneto de Camões.
Fecho o livro e escrevo este texto.
A editora é a Mariposa Azual (azual mesmo, não é gralha).
risoletapedro@netcabo.pt
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