2008-07-16
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


Os BANDOs E A BANDA



“Extravagante”. É o subtítulo de uma ópera do compositor Jorge Salgueiro.

Não se preocupem em ver onde passa a banda, porque já passou.

Suponho que a esta hora já devem estar a desmontar a máquina de cena do Bando, onde se passava tudo o que se passou.

O Bando é o grupo de teatro sediado em Palmela que toda a gente conhece, famoso pelas magníficas encenações/interpretações de João Brites e actores, e pelas já célebres máquinas de cena. O outro bando eram as gaivotas que como figurantes contratadas, durante todo o espectáculo sobrevoaram, empenhadas e competentes, o espaço do amplo pátio interior dos Jerónimos normalmente fechado ao público. Essas não devem ter abandonado o cenário porque elas são o indelével cenário.

Mas falemos da ópera, e da razão por que se escreve aqui sobre uma ópera que já passou.

É que não passou. Continua a vibrar dentro de mim. E dos que a viram/ouviram/sentiram/viveram.

Imaginem uma orquestra do formato do mar. Os músicos entram em cena vestidos de gaivotas, na verdade assemelham-se a um bando organizado de gaivotas em terra, serpenteando a máquina de cena do bando, sempre a subir, até aqui ficarem empoleirados como gaivota em mastro de navio com as suas partituras e os seus instrumentos.

No ar, as gaivotas reais compõem o cenário e reforçam a música com um toque naturalista.

Vou usar muitos adjectivos, porque não sei, sem eles, exprimir a intensidade das emoções que permanecem em mim.

O texto é comovente, a “composição”/libreto de João Brites a partir do manancial de Sophia, profundamente inspirada. A música é arrepiante, magnífica, inspiradíssima.

A história aproxima-se do arquétipo do filho pródigo, aqui no feminino. O que lhe confere uma tremenda força. A rapariga que sai de casa dos pais desobedecendo à vontade paterna, porque quer ser marinheira. É a desobediência da jovem, a desobediência da filha, a desobediência da mulher.

O pai implacável que não perdoa, o mundo como apelo e quase fatalidade, a ilha como sonho.

As vozes são poderosas. Sempre. Faladas, cantadas, recitadas, rugidas, murmuradas. Na sua competência, na sua expressividade, no seu lirismo, na sua agressividade, na sua potência, na sua fragilidade. Da colocação do lirismo/coloratura clássicos ao gutural do heavy metal. Umas vezes parecem saídas do céu, outras do inferno, mas o inferno é tão atraente como o céu. E encontram-se no mar.

Os corpos, expressivos como vozes, expressam-se com uma gramática que permite aos olhares que sintam o que vêem de longe.

O frio é intenso, como numa tempestade no mar, mas não penetra nos corpos, por causa do entusiasmo que nos transforma provisoriamente em deuses assistindo ao teatro dos humanos, e também por causa das mantas e dos impermeáveis que fazem parte do património do Bando, devido à sua predilecção pelos espectáculos ao ar livre. Transportam sempre com eles o frio da serra de Palmela, mesmo para um claustro dos Jerónimos.

Estamos sobre a crista de uma onda de naufrágio, mas estamos como deuses elevados e enlevados pela música.

Quando se ouvem os primeiros acordes, a sensação, para quem conhece a música de Jorge Salgueiro, é a de regresso a casa. Mas é um canto de sereia, enganador como o canto que nos leva para longe, a música transporta-nos para o alto mar e aí só não naufragamos porque, paradoxalmente por causa da mesma música, nos transformámos em deuses, estamos acima das sereias, afinal talvez aqui estejamos realmente em casa.

Agora folheamos um livro de histórias muito antigo, anterior à infância. Joana (a espantosa Inês Madeira), a menina marinheira, começa por se assemelhar a uma Gata Borralheira, mas passadas umas páginas de música já parece um Principezinho num planeta de Saint-Exupéry.

E as gaivotas, sempre. Só o Bando consegue assim convocar bandos: de músicos, de marinheiros, de virtuosos cantores, de maravilhosos actores, de misteriosas músicas, de… gaivotas. Criando uma iluminada música na noite, iluminando corpos na nocturna ilusão do espaço.

A história é uma luz na noite das emoções humanas.

A música é o instrumento do milagre.

Quando a filha quis voltar, a mãe disse, repetidamente, como resposta ao desejo de regresso da filha:

- Não venhas, pois teu pai não te receberá.

E a filha não foi, enrolada num cobertor de dor e medo a protegê-la do frio da alma.

Se tivesse atravessado o mar… se tivesse ousado, quem garante que o pai não a teria recebido?

É preciso sempre enfrentar o mar e o medo, ainda que tenha nome de mãe, ainda que tenha nome de pai. E aceitar o dar, o recusar e o voltar.

Não sei se foi esta a história que viram os outros espectadores. Mas do cimo da minha onda, enrolada em muito frio, resistindo às sereias como deusa, uma gaivota mostrou-me o outro lado do libreto e eu reescrevi aqui o final que eu, deusa, escolhi para mim.

Ficou tudo por dizer. Deixo aqui, apenas, o sentir.

SAGA.

“ópera extravagante”

Música de Jorge Salgueiro
Libreto é de João Brites a partir de textos de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Jerónimos/Museu de Marinha

JOANA: Inês Madeira (mezzosoprano dramático)
MIGUEL: João Sebastião (tenor lírico)
MULHER DO SILÊNCIO: Sara Belo (soprano dramático)
HOMEM DO SILÊNCIO: Rossano Ghira (contratenor)
DEUSA PIRATA e CAPITÃO PIRATA: Filipa Lopes (soprano coloratura)
DEUS PIRATA e ARMADOR PIRATA: Fernando Ribeiro (voz gutural "Moonspell") ou Rui Sidónio (voz gutural "Bizarra Locomotiva")
MARIA: Cristina Ribeiro (pop rock e fado)
GUSTAVO: Francisco Fanhais (cantautor de intervenção)
LAURA: Ana Brandão (actriz-cantora)
ISABEL: Sandra Rosado (bailarina-cantora)
JOÃO: Pedro Ramos (bailarino-tenor dramático)
BANDA DA ARMADA




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