Risoleta Pinto Pedro
Circo do Sol
Vou a caminho da estrada marginal no sentido Lisboa Cascais, a hora de ponta. Carros atrás de mim, carros à minha frente em fila lenta. Ainda não se vê o mar, apenas o rio e mal. Enquanto não vem o mar, entretenho-me a ir observando, pelo espelho retrovisor, as variações dos rostos dos condutores dos carros de trás, já que dos da frente nem a nuca está visível.
Um homem maduro trava um diálogo com um jovem que vai ao lado do condutor, cheio de pala e brincos. O homem articula as palavras com tantos gestos de maxilares que parece que se vai desarticular ou engolir o ar em estado sólido. Abre a boca até ao máximo e rapidamente a fecha, fala como quem mastiga carne muito dura. Talvez seja mesmo isso.
Passados uns metros, quando olho para trás já não o vejo; ou virou à direita, ou passou para a outra faixa, ou foi ultrapassado, talvez por esta senhora que também dialoga com uma companheira, sendo que neste caso é a outra que fala. A condutora ouve-a com um maxilar cerrado e tenso. Assim se mantém. Assusto-me: estará a respirar? Não é possível respirar e estar tão tensa, mas se não está a respirar… como sobrevive há tantos minutos?! Não lhe doerão os maxilares? Será que sente? Desvio o olhar para o rio, respiro, respiro, solto as maxilas, tento libertá-la a ela com o meu movimento solto.
Quando volto a olhar já lá não estão. Agora é uma outra, mais nova, que vai sozinha no carro, cabelo louro bem tratado, bem pintado, rabo de cavalo em cima tipo postiço, tipo apresentadora de televisão ou foto de revista onde aparecem as apresentadoras de televisão e seus pares. Tem a mão na cabeça a afastar a franja. Quando retira a mão fica visível a boca, apertada e tensa, lábios finos unidos à frente como a fazer fronteira para impedir a passagem sabe-se lá a que expressão, sabe-se lá a que palavras, sabe-se lá a que grito. Assim permanece e assim me segue. Persiste atrás de mim, ao contrário dos outros dois observados, que talvez sem o saberem, cedo se cansaram de me seguir ou de ser alvos da minha discreta observação. Ela segue-me com seus lábios cerrados como dentes, mas entretanto alguma coisa acontece, os lábios separam-se, abrem-se, descontraem-se, esboçam, formam… um sorriso!, seguindo o movimento do olhar. Sigo o olhar e o sorriso: à nossa esquerda a tenda exuberante e colorida do Cirque du Soleil. Perscruto melhor o interior do carro não vá lá alguma criança a quem ela esteja a mostrar a tenda, mas não, a única criança que visivelmente viaja naquele carro acaba de ressuscitar dentro dela, acaba de vencer a barreira dos lábios apertados, acaba de desaguar naquele sorriso da menina que de repente esqueceu as rabugices da vida, a marcação do cabeleireiro, a conta da boutique, o telefonema que não chegou, o telefonema que não devia ter chegado, e se soltou solar. Circu…lar.
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