Risoleta Pinto Pedro
Mudam-se as vontades
O menino ia no comboio. Era pequeno, ele. Grande, o comboio, sem dúvida. Ainda maior nesse tempo, em que os comboios e as casas e os adultos eram enormes, e os adultos eram velhos, como nunca mais os jovens adultos de quarenta e cinquenta anos voltaram ou voltarão a ser.
Ia ele e o avô, que devia ter a idade que ele tem agora, ou menos, mas que na altura era um velho. Já tinha cabelos brancos.
Eles tinham de sair em Vila Franca de Xira, mas o avô, que era distraído, deixou passar a estação. Quando se aperceberam disso o avô reagiu como um adulto tranquilo distraído habituado a si, ele reagiu como uma criança abandonada no mundo ao descuidado de um adulto irresponsável. Deixar ficar a estação para trás era deixar ficar o pai para trás, o pai estava lá à espera, e ali ia ele a caminho sabe-se lá de onde, na pior das hipóteses, para um menino pessimista como ele era, até poderia o comboio desviar-se da rota, entrar por outros carris e lá ficava o pai perdido para sempre na estação passada, na vida passada, no passado passado.
Chorou até à irritação do avô.
Ultrapassou a irritação do avô e chorou até à paragem seguinte onde finalmente saíram.
Chorou até apanharem um novo comboio no sentido contrário, de regresso.
Chorou até o novo comboio chegar à estação de Vila Franca, e parar e saírem.
Chorou até chegar ao pé do pai.
Chorou até se esquecer da dor de poder nunca mais ver o pai.
Não se recorda de quando parou de chorar.
Ainda hoje chora.
A dor de já não poder perder o comboio. Com o avô.
Assim transforma em bênçãos todos os momentos de choro. Por ter vivido. E chorado. E por poder recordar.
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