2008-06-18
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


Feijão-frade para dormir

Uma vez comprou uma almofada numa loja que depois fechou. A almofada parecia ter propriedades mágicas, feita de um misterioso material muito leve, flexível, fresco sem ser frio, aconchegando-se ao pescoço sem se deformar. Proporcionava-lhe um repouso perfeito para a cabeça, um sono perfeito para os sonhos e sonhos perfeitos para o sono. Tinha apenas um pequeno defeito, estava a ficar pequena, ou por o pescoço dele, com a ginástica das ideias, se ter alongado, ou pelo natural envelhecimento da almofada. Nunca mais encontrou à venda uma almofada igual. Um dia, de tantas voltas lhe dar a fim de encontrar uma abertura por onde conseguisse saber de que material era feita, encontrou um misterioso fecho-éclair que nunca vira antes, por onde foi possível descobrir o material de que se compunha, espécie de misteriosas sementes que no entanto não conseguiu identificar, mas ponderando seriamente tratar-se de transgénicos.

Descoberta a abertura, aproveitou para encher um pouco mais, hesitando entre o feijão-frade e o feijão azuki, que pelas suas conotações com o oriente talvez pudesse proporcionar-lhe um sono zen. No entanto o patriotismo e a tradição nacional penderam para o feijão-frade, pelo que a almofada se encheu de uma mistura de consequências imponderáveis e inimagináveis. Oculta e misteriosamente, a combinação entre as sementes desconhecidas e o feijão-frade foi amadurecendo em silêncio sob os sonhos do sonhador, e não é possível saber se foi a influência dos sonhos se a união dos grãos que está na origem dos acontecimentos estranhos que vieram a produzir-se ali. Uma germinação ao princípio apenas imperceptível começou a ter lugar no interior da almofada, e só uma ligeira humidade, um movimento duvidoso e a alteração dos sonhos, que passaram a ser totalmente vegetais, indiciava que algo estaria para acontecer.

Uma noite, pelo meio de um sono de violetas, sentiu uma estranha movimentação pelo interior de si, mas não era o sangue, não eram as entranhas, não eram os fluidos, não era o ar. Eram caules finíssimos, subtis raízes como linhas, que lhe entravam por todas as aberturas do corpo, os poros incluídos, e se espalhavam pelos espaços inimaginados por que era percorrido. Filamentos longuíssimos penetravam o tecido da almofada, e após algumas circunvoluções pela seda do lençol como que procurando um caminho ou uma abertura, sinuosamente se espraiavam sobre o corpo à procura de uma abertura, quem sabe um convite, uma entrada, por vezes após verdadeira subida a pique. Carícias.

Do sonho pouco restou para além de um nítido perfume a seiva, uma saudade vegetal, uma almofada simulando uma normalidade fingida e quanto ao resto tudo igual, como na vida.

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