2008-06-11
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


Ciclo “pianos”

III - O piano

Vieram os homens para buscar o piano. O piano era mesmo muito grande. Demorou tanto tempo a descer as escadas que os homens tiveram de se reformar e de ser substituídos por outros. Também o piano chegou àquela idade em que se ganha peso e engordou, ficou mais volumoso. Logo, cada vez mais remota a esperança de o tirar dali. As pessoas habituam-se a tudo e habituaram-se ao piano, umas passavam por baixo, outras por cima, quando se encontravam a meio das escadas no sítio do piano, este era sempre um pretexto para uma troca de palavras, avaliavam a posição, se se tinha deslocado levemente (havia quem achasse que sim), se voltara à posição inicial (havia quem achasse que também). Um dia, um miúdo daqueles que por ali iam andando a observar os esforços dos transportadores, numa hora em que não havia ninguém experimentou levantar o tampo e conseguiu. Nos intervalos de trabalho dos transportadores, e à hora do almoço ou depois de eles se irem embora para as suas casas após um dia de árduo esforço para um bem merecido descanso, a criança começou a experimentar as teclas e conseguiu fazer música. Apaixonou-se por isso e já não brincava a mais nada. Todo o tempo que tinha era para o piano. Os vizinhos, as pessoas das casas à volta e depois de toda a cidade, vinham ouvi-lo. Pagavam aos transportadores para não o perturbarem, para o deixarem tocar. O menino cresceu e continuou a tocar. Tocava das 9.00 ao meio-dia, das 14.00 às 19.00 e das 21.00 às 24.00. Na padaria, no supermercado e na pastelaria estava afixado o repertório de cada dia, em cada semana. As duas primeiras horas de cada segmento do dia eram para estudo, as outras e a noite, para concertos. Mas havia sempre gente a todas as horas, pelo menos os reformados, as crianças pequeninas ainda sem idade escolar e os ex-transportadores, que agora eram pagos para não transportar, embora a sua actividade não tivesse passado a ter resultados muito diferentes dos de quando eram pagos para transportar.

O pianista, que já não era um menino, começou a precisar de arranjar trabalho para ganhar a vida e as pessoas pagaram-lhe para não deixar de tocar. Passou a tocar a meio das escadas como se fosse o pianista contratado de um átrio de hotel. O repertório era mesmo muito parecido.

Os velhos foram morrendo, os novos foram casando, os meninos foram nascendo, o pianista também casou, teve meninos, o prédio, que já era velho, ficou ainda mais velho e era preciso demoli-lo, e os moradores e vizinhos pagaram a um fiscal da Câmara para que este não fosse demolido.

Uma noite, após os últimos acordes da Sonata ao Luar, ouviu-se nas casas à volta um tão ruidoso silêncio, que todos vieram espreitar às janelas. No sítio do prédio erguia-se um imenso vazio. Olhando para cima, apenas nuvens. Faziam lembrar vagamente a imagem do piano muitas vezes multiplicada, mas sabe-se como as nuvens são seres capazes de se transfigurar.



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