Risoleta Pinto Pedro
OS LIVROS QUE MUDAM
Três Cavalos, de Erri de Luca
Ed. Âmbar
Devia ter começado pelo fim, às vezes começo pelo fim, mas desta vez deu-me para começar pelo início. E isso irritou-me. Porque começa assim:
“Leio só livros usados.
Encosto-me ao cestinho do pão, mudo a página com um dedo e ela fica quieta. Assim mastigo e leio.”
Ora acontece que este livro é novo, ofereceram-mo novo. E eu iniciei a leitura no momento em que ia comer um iogurte. Uma complicação. O livro e o iogurte na mão esquerda (não me perguntem como, mas era absolutamente necessário segurar o livro, para as páginas não passarem sozinhas, e a embalagem do iogurte era daquelas muito leves que tombam se não as segurarmos), a colher na mão direita, uma ginástica difícil. Irritou-me, porque ainda por cima ele tinha razão, mas também porque não faz sentido ter como critério ler só livros usados, se assim fosse não teria lido este livro.
Depois apercebi-me que estava a cair na esparrela de alguns dos meus leitores: levarem à letra o que eu escrevo:
“Não acredito nos escritores, mas sim nas histórias deles, […]”
Já tenho dito que o que escrevo é sincero mas pode não ser verdade. São duas coisas diferentes. Neste estado de espírito prossegui a leitura.
Este livro vem fazer-me reequacionar, num momento em que pensava ter este assunto mais do que arrumado, a minha relação com a leitura. Dantes eu lia muito, muito mesmo, depois comecei a escrever e o tempo que dedicava à leitura passou a ser repartido pela escrita que foi tomando terreno, cada vez mais, até me sobrar muito pouco para os livros dos outros. Mas este jardineiro de meia-idade a ler livros usados numa tasca enquanto deita alho na sopa e beberrica o seu vinho, se primeiro começou por me irritar, depois passou a ser objecto de inveja. Da minha inveja. Dois em um, dois sentimentos que não me são habituais com uma única leitura. Para começar. Isto promete, resmungo.
Para além do mais, o seu abc da leitura sobre os preceitos à mesa não coincide exactamente com o meu: “A colher é amiga da leitura, pesca no prato mesmo sozinha. O garfo exige mais atenção.”; não posso estar de acordo, é que é preciso dar atenção ao percurso seguinte, do prato à boca, e nessa viagem o garfo é mais compatível com os livros, mas desconfio que os livros dele devem estar cheios de nódoas de sopa, coisa que o meu preconceito ainda não conseguiu vencer…
Fui passando as páginas, ultrapassei as nódoas e entrei no mundo de uma ficção poética onde a geometria ocupa um lugar nobre na coroa da flor, na copa da árvore, ao correr da pele…
“Enquanto estou de costas sinto os dedos dela a passar-me pelo pescoço de uma orelha à outra. Não compreendo o gesto, volto-me devagar, diz que tenho duas rugas paralelas como o pai dela […]”
Pela subtil inteligência do ar ou ao correr da seiva:
“Só as tuas mãos podem fazer incenso da salva, diz, cheira, a linha do nariz faz um ângulo apertado com o plano da mesa.”
Ou no mistério do mundo:
"O alinhamento leva-me a um princípio de sorriso nas faces. A geometria das coisas em redor leva a que aconteçam coincidências, encontros."
Como medida de compreensão:
“[…] se pensas uma coisa de mim, tira-lhe um pouco, retira-lhe um grau e eu respondo-te aqui estou”
“Para mim as coisas dos ângulos são assim: se são agudos são bons, se são obtusos maus e se estão a noventa graus há empate.”
"Quem tem um septo assim imponente em plena cara deve ser boa pessoa"
… a geometria como código de reconhecimento da bondade pelo olhar.
A geometria e os segredos dos vivos e dos mortos, o indizível rigor:
“Nesses dias vejo claro na geometria. Os vivos não estão a noventa graus por cima dos mortos estendidos, mas antes paralelos. A foice não é curva como a lua mas como o ovo.”
É também um livro sobre a leitura e os afectos:
"- Gosto de um homem que lê.
- Faço-me companhia assim."
Também o amor entre dois seres pode ser simplesmente equacionado da forma mais despojada pela linguagem dos símbolos mais abstractos, ainda que numa equação não resolvida. Claro. “Ponho o livro de lado na mesa e penso que agora parece um sinal igual./Ela e eu estamos em frente um do outro como dois números que têm ao lado esse sinal. Não sei que operação seremos.”
Este livro está cheio de matemática, poesia e geometria e o narrador assume-o. Digo-o no meio do vento e espalho-o aos quatro ventos como uma declaração de amor.
Por detrás do desencanto, da passagem dos anos, dos remorsos, de uma vida dura, sempre o olhar afectuoso, e uma ética de liberdade, simplicidade e amor:
"Contas como é o mundo, nunca te podes baralhar. Basta que lhe queiras bem."
Aqui, verdade, profundidade, natureza e olhar poético são a mesma coisa:
"Uma árvore precisa de duas coisas: substância debaixo da terra e beleza fora dela. São criaturas concretas mas move-as uma força de elegância. A beleza de que precisam é vento, luz, pássaros, grilos, formigas e uma meta de estrelas para onde apontar a forma dos ramos”
A personagem principal é um jardineiro que ama as árvores e que as compreende no seu imenso mistério.
“Se vem de um viveiro e tem de ganhar raiz num solo desconhecido, sente-se confusa como um rapaz do campo no primeiro dia de fábrica”. Ou, acrescento eu, como uma menina no primeiro dia de aulas. Compreendo este jardineiro, compreendo as árvores, este jardineiro compreende-nos, a mim e às árvores. Um dia escrevi que o melhor poeta é o que me compreende; não poderia estar mais de acordo comigo mesma.
Mas compreende muito mais do que as árvores, ele tem dentro de si a sabedoria da beleza, uma teoria estética feita de uma antiquíssima e universal ética onde detém o segredo do próprio crescimento das árvores…
“A terra tem desejos de altura, de céu.”
… e aceita a vida, a natureza, a humanidade e as imperfeições.:
“Estes contratempos parecem-me bem”; mais eloquente e convincente que todo um tratado zen.
“O motor que nas árvores faz subir a linfa para o alto é a beleza, porque na natureza só a a beleza contradiz a gravidade.”
Conhece as árvores, conhece os pássaros e revela que afinal a falada linguagem dos pássaros é uma oração:
“Depois [os pássaros] fazem um sussurro de concórdia, penso que rezam.”
Um jardineiro. De mais nada necessita o mundo:
“À tarde chega a azinheira. Ajeito as raízes na cova, arrimo-a a três paus, adubo e rego. É já um belo tronco, custa-lhe esforço e perigo implantar-se de crescido. Por vezes entristecem e não querem mais viver. Cantarolo à volta dele como boas vindas[…]”
A realidade, para este jardineiro, ou é geometria, ou oração, ou poesia:
“As caras estão escritas.
Também as mãos, digo, e as nuvens, o manto dos tigres, a casca dos feijões e o salto dos atuns à tona da água é uma escrita:
Aprendemos alfabetos e não sabemos ler as árvores. Os carvalhos são os romances, os pinheiros são gramáticas, as videiras são salmos, as trepadeiras são provérbios, os abetos discursos de defesa, os ciprestes acusações, o alecrim é uma canção, o loureiro uma profecia.”
… ou talvez geometria, oração, poesia, a linguagem dos pássaros, a gramática da natureza e o olhar amoroso e compassivo de um jardineiro sejam a mesma coisa.
Para os de nós que nascemos numa cultura mediterrânica, os perfumes e sabores destas páginas fazem-nos sentir balouçares de berço:
[…] corto queijo ralado, polvilho-o com salva e um fio de azeite.
[…] Tenho já manjericão em vários vasos, é esse o campo dos cheiros.”
“Gosta das azeitonas pretas, a força do azeite fechado num madeiro duro de roer,[…]”. Imagens fortes que nos desviam de todas as distracções em que andamos afogados e nos atraem novamente com a força do seio materno, para o que é essencial:
“As azeitonas fazem-me companhia […]”, a recordar-nos que realmente de muito pouco necessitamos…
Aqui, como se percebe, já estou totalmente reconciliada com este leitor/personagem (ou com o narrador? o autor?) , não sei com quem me reconciliei porque desconheço com quem me zanguei, é um livro trespassado pela leitura, pelo leitor/personagem: “eu ao vinte anos não sei o que são abraços e decido esperar. Espero a criatura destinada. Estou atento, aprendo a percorrer os rostos de uma multidão em poucos instantes. Há sistemas para aprender a leitura rápida de livros, eu aprendo a ler uma multidão num ápice.”
Reconciliei-me com “ele”, mesmo que me retire as palavras da boca:
“[…] o destino não depende os olhos, ainda que não saiba de que depende.”
Reconciliei-me, não há como não, porque no meio da profunda violência da vida a que esta história/poema não poupa o leitor, escondem-se pérolas, cristais puros que cada um por si só, bastaria como mandamento único para salvar a Humanidade de si mesma: “[…] tenho cuidado ao falar contigo para não te pisar os pés. Não é como nos bailes, é como num caminho de pedra com algumas ervas nas juntas. […] nas casas muçulmanas deixam-se os sapatos à porta e eu faço o mesmo contigo.”
Bastar-nos-ia isto.
Ler este livro é como assistir à história do último "cowboy" europeu que vive num mundo onde não é fácil sobreviver, onde as emoções são fortes, a maior violência coexiste com o maior amor e a ética é brutal e marginal mas leal e honesta, escrita a sangue:
“[…] não quero pensar no amigo que resgata uma dívida com um abraço e uma garganta cortada.”
Um cowboy que em vez de montar o cavalo abraça as árvores, substitui a pistola por um livro no bolso que acaricia para se sentir seguro na sua solitária caminhada de sobrevivência, de acossado:
“[…] toco o livro no bolso para me ajudar […]”
ou como quem toca uma imagem de santo, o livro como ícone de protecção, salvação no mundo…
… ou o último e misterioso remédio contra uma doença, contra as mais terríveis doenças, gesto mágico que repete, forma de reconhecimento de que os pontos cardeais permanecem onde deveriam estar, e de serenidade, o livro que cura:
“Toco o livro no bolso […] deixo-o estar, é convalescença para os dias que vêm.”
… e sem fazer nada, apenas sendo, ou justamente por isso, arranja uma rapariga num bar de marinheiros por quem se apaixona perdidamente. E não acerta. Porque ela não pode ser sua, já que é de muitos. Ainda que o ame. Como acontece aos cowboys bons, esses “duros” que escondem por detrás da indiferença do olhar a inocência do olhar infantil demasiado vulnerável para aparecer à luz do dia, mas que na sua rudeza são elegantes e despojados. Profundos, sérios e livres. Com um olhar profundamente humano encontrando em cada ser verdadeiro com quem se cruza o que faz dele excepcional e único, que na boca de um africano põe as seguintes palavras:
“[…] aqui no vosso país trabalha-se com água da terra. Tiram água de um poço, de uma fonte, de um rio. No nosso trabalha-se com água do céu. Recolhemo-la quando temos alguma. Amassamos com ela. As nossas casas são feitas de chuva, são mais nuvens do que casas.
[…] No meio dos cabelos cinzentos tem um pouco de pólen amarelo, a mimosa mostra-lhe afeição.
E na mão tem um tinto para beber no copo de vidro e o branco das unhas; em resumo Selim está bem na companhia das cores. Penso que a elegância é isto”
E sobre um croata, digo, um mundo em extinção: “Encontro um velho croata que foi muito tempo operário na Áustria. Era um dos nossos outros tempos, daqueles que sabem reparar uma máquina improvisando uma peça sobresselente e ainda sabem fazer queijo e ainda sabem construir uma casa e fazer vinho.”
Nesta altura pensei: este homem está a falar do meu avô!, que para além disto tudo sabia fazer pão, cantar ao menino Jesus, hipnotizar galinhas, fazer uma instalação eléctrica, matar e arranjar um porco, falar sobre as marés, admirar a natureza, desmontar e montar um relógio e mais, muito mais coisas.
Foi aqui que passei da reconciliação ao amor.
Rendi-me, quando começou a escrever sobre mim: “Por vezes para alinhar dois passos um a seguir ao outro tenho de escrever um contrato comigo próprio.”
Respondo-lhe então com as suas próprias palavras:
“Agrada-me essa precisão tramada nas coisas que dizes.”
Aqui decido terminar, repousando a página e pousando o livro como “a última folha de uma árvore”, porque “Há humildades que engrandecem um homem”. E uma mulher.
Deixo ainda uns últimos salpicos de estrelas que retirei deste livro:
“Um homem reza e desse modo acumula a substância no céu. As nuvens estão cheias do hálito das orações.”
“[…] a fé vem a seguir ao riso, mais do que a seguir ao choro.”
“[…] a coisa mais importante na idade dele e na minha é manter o sorriso.”
“[…] porque os livros mais do que os anos e as viagens mudam os homens.”
Chego ao fim do livro. Está pesado, lento. As páginas pousam como pálpebras antes de fechar.
Faço então como ele:
“Enfio o livro no bolso interior do casaco, encostado ao peito por dentro. No antigo sítio da arma há agora o completamente diferente.”
O prolongamento do coração.
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