2008-05-07
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


Sobre:
YESHUA, As Mulheres de Jesus
de Frederico Mira George



Releio este livro no dia de Páscoa. Entre as Paixões de Bach procuro a de Lucas, que não existe; aqui está a de S. João, a de S. Mateus, e mesmo a de Marcos, mais tardiamente encontrada ou interpretada, mas não a de Lucas. Interrogo-me porquê. É um dos mistérios do mundo da música, embora possa ser só ignorância minha, de qualquer modo ouvir as Paixões é já em si, uma experiência de mistério. Os primeiros acordes da Paixão Segundo S. João não são música de agora nem daqui, a não ser que entremos no tempo que a música nos propõe. Também ler este livro é uma experiência de teletransporte até… nós mesmos. Temos sobre a mesa várias experiências de Paixão: a que temos com a música, em que o choro é uma das possibilidades, mas um choro de água de Jordão, ou de baptismo, sempre de ablução, a experiência da personagem Afonso que “leu as primeiras linhas” do “Evangelho de Lucas” e segundo o narrador, “nunca chorou”.

Pego neste livro como Afonso no Evangelho:

“[…] Nas suas mãos, os Evangelhos.

Nunca os compreendera.

Ou nunca se tinha permitido compreendê-los.

Dali para a frente aqueles documentos seriam a sua única companhia. Ou voltava à morte ou lhes dava vida.

Afonso não queria a morte.”

No entanto não fora com alegria que vivera “os últimos momentos da sua ordenação sacerdotal.” Mas não chorara.

Talvez por não lhe ser permitido pelo narrador, afinal não é ele, ou não é ele assumidamente, a personagem principal, ele vai ocultar-se por trás da figura de Jesus, aliás tão luminosa figura terá de ter uma imensa sombra onde se acolhem todos os que não querem vir à luz, como a própria Maria, aqui aparecendo como o verdadeiro Messias num tempo em que seria muito difícil a uma mulher aparecer como tal.

Talvez daí o mistério do rosto de Jesus, com que sempre me cruzei desde menina. “Alguma coisa esses que foram ungidos pela Sua presença quiseram ocultar. Que sinal teria a aparência de Jesus que devesse ser salvaguardada dos que com Ele não contactaram […]?

Assim se desenha a tese de que Gabriel morre para poder nascer o Cristo Maria e ser Jesus (Yeshua), o anunciador, o rosto visível e masculino do oculto Cristo feminino:

“[…] aos treze anos conceberás e gerarás O Ser que revelará aos povos a Tua grandeza.”

Anunciará Gabriel.

Treze anos, esse tempo de conceber ou de morrer…

É esta a história de Jesus e sua mãe Cristo, ou de como se põe em romance um ritual.

É necessária uma certa atenção aos nomes, porque neste romance os nomes não designam o que sempre nos habituámos a representar. Aqui, a Mãe do Mundo é a mãe de Maria, porque Maria é o Mundo. A partir da declaração desta verdade, o Mundo passou a estar em cada um que o reconheça por estas palavras.

Pelo meio da ficção, do ritual e dos símbolos, um livro oculto: o livro dos preceitos da alma e dos corpos, assim lhe chamaria eu, e era possível com um trabalho de recolha, fazê-lo surgir à luz, mas não sei se é legítimo fazê-lo. Limito-me a comprovar o que digo:

“[…] quando nascemos só recebemos um corpo. Se cuidarmos dele, durará mais e será jovem até mais tarde. Se nos descuidarmos no seu trato, envelhecemos mais depressa.” E ainda:

“Cada um que cuide dos seus pensamentos, como se cuidasse da sua saúde, lembrando-se sempre que ao revestir o corpo com estas vestes é a vontade do Senhor que se está a honrar e não a vaidade dos Homens.”

Mas outros mistérios se revelam, como os segredos que a avaliar pelos aqui apresentados, nos levam a reflectir sobre que segredos presidirão ao momento do nascer. Que avatares ou ventos ou átomos se deslocaram com Mercúrio e se terão reunido num conselho de sábios planeando a missão que talvez muitos de nós cumpram sem nunca chegar a conhecer?

Que intenções se escondem por detrás dos gestos dos misteriosos bebés com que todos os dias o mundo presenteia o mundo?

Como quando o ainda bebé Yeshua “apontou “com Seus dedos, indicador e médio, um homem doente, moribundo junto a uma casa arruinada.”[…] “Quando Yeshua apontou o pobre homem, pareceu-me que o abençoava, ou talvez o contrário, talvez se sentisse abençoado por ele.” O mundo ao contrário, ou o Evangelho Segundo Alice, mas qual de nós não se sentiu já intimidado ou transformado pelo olhar ou pelo gesto enigmático de um bebé?

Fala-se do amor, mas de um amor do que não se conhece, um amor Segundo um qualquer Evangelho futuro: “[…] ela já te ama, ainda que não te tenha conhecido.”

Metamorfoses, metamorfose do amor, metamorfose dos corpos, metamorfose das almas, daí a metáfora da seda, esse tecido da metamorfose: “ [… ] a seda deve ser considerada uma «pele» perfeita e leve sobre a nossa própria pele.” Metáforas de todos os que se transformam e estão dispostos a morrer para nascer, como Buda e Cristo.

O ecletismo simbólico é uma das interessantes particularidades deste livro, que percorre e harmoniza a simbologia desde a cabalista, à cristã, à budista, e mesmo algo que poderá ser interpretado como rito maçónico. Todos os princípios, símbolos, gestos, objectos, palavras, rituais, números, objectos do quotidiano, têm em comum o princípio iniciático, o respeito, o mesmo que acompanha a passagem pela terra dos Seres aqui apresentados como João, Cristo ou Jesus.

Mas não se esquece o corpo, diria que o corpo é o próprio espaço do altar e do ritual. Um dos momentos mais comoventes é quando Jesus se olha ao espelho e não se encontra no corpo que vê. E não é este o drama do casulo, da metamorfose e da transformação? Não é este o drama de todo o adolescente que não se reconhece quando pela primeira vez se vê no despertar do corpo? Deveria ser este o momento do baptismo, o verdadeiro momento em que o ser assiste ao seu nascer como aqui se conta do baptismo enquanto criação consciente de um ser verdadeiramente livre que escolhe fazer o percurso dos elementos, não apenas do sal e da água, mas também do fogo e do perfume. A descrição dos gestos de ternura entre Johannes e Yeshua o andrógino, o ser completo, é das mais belas páginas de celebração do amor no sexo e passando para além dele, indo muito mais longe, a impensáveis lugares. Ou não-lugares.

“- Mais importante do que aprender a ser notado aos olhos de todos, é aprender a invisibilidade.”

A escrita de amor nos corpos é para quem reconhece no amor humano a aprendizagem de um amor maior, palavras rituais desenhadas pelas mãos na pele com indelével e invisível tinta. Assim se amaram. O símbolo é vazio e até mesmo perverso, sem a humanidade dos corpos, enquanto formos corpos. O romance continua ainda, regressamos a Afonso (alguma vez deixou de se tratar dele?), a personagem da actualidade que nos guiou até Jesus e Cristo, sua mãe, mas eu calo-me aqui:

“ (…) que nem mais uma palavra seja dita.”



risoletapedro@netcabo.pt
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