2008-04-16
QUARTA-CRESCENTE


Risoleta Pinto Pedro


DANÇA DE RODA



Os primeiros jogos das crianças quando entram na fase de socialização são os jogos de roda onde se dança em torno de algo ou alguém e se canta; às vezes um fica de fora e tem de reganhar o seu lugar, sendo que para isso outro será excluído. Cedo aprendemos a escassez e a competição. É o ilusório mas normalmente chamado mundo real.

A recordação destas danças infantis colectivas foi em determinado momento da minha idade adulta, um dos mais poderosos elos de ligação à minha infância. Continua a sê-lo, mas já não é o único. Algo de muito importante existe nesta invisível e simbólica dança de roda que ritualmente sem o sabermos fazíamos, e onde, sem o sabermos, até os mortos eram evocados.

Apesar da aparente simplicidade, é um dos momentos mais ricos das brincadeiras desse mundo remoto.

As mãos dos meninos e meninas que com as nossas se uniam eram a antecipada materialização dos milhares de mãos que ao longo da nossa vida viriam a passar pelas nossas: a mão do amigo que se aperta, cúmplice, a mão dos inúmeros conhecidos e desconhecidos cuja mão no cumprimento nunca mais tornámos a sentir, mãos que nos abençoaram, que nos apontaram, a do pai que nos protegeu, da mãe que nos acariciou e cuidou, as mãos electrizantes do amor, a do menino ou da menina que nos socou na infância, a mão do médico que nos tratou, do professor que nos interpelou, dos mortos cuja mão sentimos sobre a nossa, desfalecer.

Sem o sabermos, a mão direita responsabilizava-se pela esquerda do outro e assim se uniam polaridades. Algo acontecia quanto ao arquétipo do espelho e do ponto de vista da criação de uma força magnética.

No momento sagrado da roda, estas mãos unidas materializavam um momento de silencioso juramento, o de não romper o tecido que ali tecemos, de não desfazer o entrelaçado com que o adornávamos e reforçávamos. Era a cadeia tecida pelos braços e mãos, sustentada pelos pés vibrantes, como uma renda dentada e interiormente reforçada pelos laços do coração e do pensamento.

Formávamos um círculo fechado, uma espécie de lugar mágico e seguro, púnhamos em inconsciente evidência as polaridades, e havia uma mão que desempenhava o papel activo à semelhança da mão direita de Deus que cria, do semeador que lança a semente à terra, do arquitecto que traça o compasso.

A roda era o entrelaçamento de nós, que tanto paralisa como protege.

Mas mesmo a protecção pode, a partir de um certo momento, passar a ser limitativa.

Assim, a aprendizagem que, pequenos arquitectos ali esboçámos para o futuro, foram laços criados que deverão ser inclusivos, flexíveis e securizantes, não no sentido de cortar o risco e a liberdade do voo de cada um, mas de lhe permitir voar com maior segurança e apoio, criando sob ele uma rede para que, se cair, não se magoe a ponto de não querer voltar a tentar.

Crianças de mãos dadas são o tecido dessa fina rede, flexível mas forte, suporte mas não prisão. Embora o perigo espreite, por causa da cadeia, por causa dos nós. A cadeia tanto segura como prende, os nós tanto firmam como embaraçam.

É um dos símbolos mais ambivalentes, se é que esta ambivalência não é, afinal, a natureza de todos os símbolos e arquétipos, porque é ela mesma que abre a porta à dimensão universal, intemporal e infinita do símbolo.

É o arquétipo do tecido, dos nós como fazendo parte da estrutura do inconsciente. É o desentrelaçar do tecido enrolado do labirinto, é o cérebro enrolado e misterioso, iluminado pelo sol e tornado coração, fluido, reflector e quente, corda em que os laços são amor, são laços soltos, não estrangulam, deixam passar o ar e respiram.

A aprendizagem da liberdade.

A roda é também a aprendizagem da egrégora, a humanidade enquanto teia leve, solta, flexível e aérea, aberta aos vivos e aos mortos, ao passado, ao presente e ao futuro, aos amigos mas também aos que pensamos odiar (a grande ilusão) mas também a todos os desconhecidos e a todos os seres em toda a parte onde o menino futuro se encontrar.

O encontro com a mão do outro é o precioso encontro com o espelho táctil da pele, na sua textura, temperatura, aspereza, macieza ou rugosidade, o seu grau de secura ou humidade, é a lembrança da nossa própria secura ou humidade. E humanidade. Lembra-te, ó menino grande que vieste da pedra e ainda que sejas hoje carne e linfa, não deves confundir teus dedos, teus vestígios das antigas asas de pássaro, com as ainda relutantes asas de anjo. Em teus dedos fechados, abertos ou entreabertos desenha, por enquanto, a esquadro, a mão do outro, e devagarinho construirás tuas asas, para que o movimento da tua passagem deixe uma brisa semelhante ao respirar de um anjo, mas que ao olharem-te te reconheçam como igual e te reconheças tu na dramática humanidade dos anjos que ainda não somos.

A dança de roda simboliza na perfeição os mais puros ideais de solidariedade, porque é no sentido fraterno de que todos, na sua inalienável diferença, são iguais nos direitos, que reside o supremo ideal da liberdade de todos e de cada um que está, no fundo, a grande meta.

A roda dos meninos e meninas que fomos é a serpente viva a proteger o ovo cósmico de onde todos viemos, onde todos ainda estamos e para onde todos vamos no mesmo imenso e invisível movimento.



risoletapedro@netcabo.pt
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