Risoleta Pinto Pedro
Uma crónica depois da Páscoa…
Inicio o texto a respirar. As duas primeiras linhas não se vêem, porque são feitas de ar.
Na verdade, a primeira linha é a terceira e esta será, pelo menos, a quarta linha. São mais as linhas que num texto não se lêem, do que as outras. O melhor texto é o texto oculto e o melhor texto é o que mais oculta, porque é também o que mais permite revelar.
Um texto aberto está cheio de portas e janelas, mas sem correntes de ar. Um texto aberto está cheio de poetas. Não dos que se embebedam ou dos que adoecem e morrem ou recebem prémios ou homenagens ou medalhas ou recusam prémios ou homenagens ou medalhas, mas da sua respiração aérea ou aquática ou incendiada. A folha é a terra. A poesia é requintada como o ar. O rosto da poesia é raro, porque ela usa muitas máscaras. Veste-se de Natal ou de Páscoa, de sofrimento ou medo, mas essas são apenas as suas máscaras. A poesia é aquela que ressuscitou um dia e tanto gostou que nunca mais parou de o fazer. É isso que ela tenta dizer-nos através das ocultas linhas dos textos, que ressuscitar é um prazer imenso e que quem experimentou não quer outra coisa, mas o caminho até lá, o caminho mesmo percorrido pelo Senhor dos Passos parece assustador, e no entanto isso é apenas uma das facetas da antiga mas não eterna ilusão do mundo.
Continuo o texto a respirar, esta linha não é aquela que o ábaco contaria e no entanto o ábaco também é poesia, um belo artefacto poético disfarçado de matemática; nem o ábaco é o ábaco nem esta linha é a linha 18; pelo meio do texto se ocultam inumeráveis orações (nem o milagre do ábaco saberia contá-las), incontáveis esconjuros, algumas juras, outras tantas promessas, mil e alguns suspiros, rituais e fórmulas mágicas, palavras perdidas e reencontradas, escalas, músicas, melopeias, epopeias e ais.
A linha com que terminarei este texto não é a última linha porque depois dela como numa escala de harmónicos, se esconde eterna e infinitamente (mas é possível ouvir-lhe os murmúrios) todo o texto e todos os escondidos textos. Assim vos deixo hoje com este texto imenso aéreo e denso mas não o termino aqui. Segue-se o silêncio, o vento e a música. E o perfume das inumeráveis laranjeiras que floresceram desde a primeira Páscoa. E também as que, alheias aos dramas do mundo, haviam já florescido antes. Deixo-vos com as flores e o perfume. Deixo-vos bem.
Com a alma cheia de amêndoas e os ouvidos desimpedidos para ouvir o que o verbo diz por dentro e o que o vento sopra de fora, poupando passos mas não deixando de cumprir os que forem necessários à felicidade, desejo a todos os meus leitores e amigos e amigas e também a todos os provisoriamente e aparentemente desconhecidos, uma feliz celebração de equinócio, em silêncio mas com música (a palavra, o vento, a música e o perfume das laranjeiras são os únicos que conhecem o silêncio) e felizes ressurreições. E que trabalhemos esta Páscoa mais do que em nenhuma outra para tornarmos o nosso mundo e todos os que dele fazem parte, mais verdadeiro e feliz.
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