Risoleta Pinto Pedro
FeverOIRO - da febre ao oiro
Não é por acaso que em Fevereiro florescem as mimosas. É um mês mimoso, um mês de febre e oiro. Falei sobre ele há uns tempos. É um mês particular, este "Februo" que talvez ferva derivado a todos os maus tratos que os imperadores romanos lhe deram, roubando-lhe dias para pôr como jóias nos meses (é o caso do Augusto Agosto) com que julgaram glorificar os seus nomes. Talvez seja daí que vem ao Fevereiro este seu carácter febril. Mas é sem dúvida um mês de passagens e iniciações, difícil como todas são, redentor, como todas elas. Morre muita gente em Fevereiro, os mais frágeis. Talvez os melhores. Fevereiro não poupa os que os deuses amam, ou talvez os leve até aos seus colos. É também verdade que nele as mimosas florescem e irradiam mil pequenos sóis. Mais uma vez é o símbolo que salva. Como a madeira desta família das acácias, se for verdade o que se diz, que é dela que foi construída a Arca da Aliança.
Não sei se foi em Fevereiro, ou mesmo se já existia o Fevereiro (creio que não) quando se deu o Dilúvio, mas a avaliar pelas inundações que aconteceram por cá nos últimos dias bem precisávamos aqui de uma arca dessa madeira de acácia e muitos sóis por dentro.
Diz-se que é a arte que nos salva, eu também já o afirmei, e de certo modo não o contesto. É a arte que nos salva, mas é o símbolo que nos liberta. E talvez isso seja a mesma coisa.
Recordo que uma amiga contou que aqui há tempos, visitando com o filho uma exposição de Tapiés, esse enigmático criador que do escuro retira a luz, perante um dos quadros o filho sentiu e verbalizou algo como se uma linha da pintura o dividisse e partisse a ele em dois. Já todos nos sentimos partidos em duas, em três, em mais partes. Às vezes isso pode salvar-nos, se dos dois em que nos partimos escolhermos a melhor metade. Partir-nos é tarefa da arte. Escolher-nos é tarefa do símbolo. E tudo somos nós. Normalmente, a melhor parte é aquela que como diz Pessoa ficou lá atrás abandonada. A mais inocente, a mais despida, a menos defensiva. Talvez o nosso trabalho seja mesmo realmente o de resgate. Pela arte, pelo símbolo. O mês de Fevereiro, com os seus mortos, com os seus sóis, é um mês muito propício a tal arte real, digo, do real, digo, da morte, digo, da Luz.
Fevereiro teria sido, a olhos profanos, empobrecido, prejudicado por Júlio César, por Augusto, que lhe roubaram dias para decorar os seus meses. Eram imperadores com um profundo sentimento de escassez.
Mas nada conseguiram roubar, porque nada do que é real pode ser ameaçado. Isso é uma ilusão do mundo. As mimosas decoram-no com mil sóis. É esta a sua condecoração. E a febre, esse poderoso sistema de defesa dos organismos, deu-lhe o brilho que nenhum ouro de metal, que nenhuma medalha de vaidades confere. O sol das mimosas é a sua medalha de mérito. Os altos graus de febre em que ocultamente arde são o seu forno, onde trabalha os metais e cria o oiro.
No dia em que escrevo esta crónica faz dezoito anos que um menino escreveu, em letras de febre e oiro: “As mimosas floridas são em Fevereiro”. Depois acrescentou algo acerca do morrer enquanto crescer. E partiu ao terceiro dia. As crianças, antes de crescerem e se abandonarem a si mesmas lá atrás, são assim. Os meses pequenos também. Os seres que não fazem concessões a falsos dourados toscamente pintados, por reclamarem para si o melhor dos ouros, aqueles que olham mais aos meios que aos fins, mais ao andar do que à meta, aqueles que não se olham com estes olhos, mas com os olhos que vêem o que na mais profunda obscuridade resplandece, também.
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