2008-01-16
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


QUANDO MENOS É MAIS

Drákula…

… ou o triunfo do amor.

Afinal, a história do conde mais sinistro da história é uma love story contada em “media res” (assim se chama em gíria literária uma história que se começa a contar pelo meio dos acontecimentos, como acontece n’Os Lusíadas com a narrativa da Viagem para a Índia a iniciar-se no momento em que as naus vão já no Índico).

Aqui não se fala de naus, mas viaja-se muito, entre Londres e Transilvânia e vice-versa, onde um eminente e distinto médico se desloca para tratar Drákula, a quem aconteceu a suprema desgraça: um problema na dentição que o obriga a ter de chupar, por uma palhinha, os pescoços previamente preparados pela extremosa mãe. Drákula tem a sorte de ter uma mãe amorosa, talvez daí lhe venha a sua capacidade para amar…

Queremos falar de teatro pobre? Não podemos. Teatro sem recursos? Não podemos. É riquíssimo, este teatro, e de infindáveis recursos, riqueza humana, recursos humanos. Quanto ao resto, entre cenários e adereços, temos três ou quatro caixotes, um banco ou dois (sei lá…) uma tábua e uns quantos chapéus. É tudo. Para um número infindável de personagens, lugares, situações.

Fazer tanto, com menos, é impossível. Uma galeria imensa de personagens e de cenas, ruas, casas, castelos, cadeiras, mesas, camas, transportes, desde os navios (com o naufrágio mais divertido a que alguma vez assisti), carruagens, comboios, diligências, cavalos (cow-boys com um irritante e genial sotaque de filme americano).

De pouco necessitamos: na vida, como no teatro. Porque o que verdadeiramente necessitamos já o temos (“nada do que é real pode ser ameaçado”, li em tempos…) e é dentro de nós que o temos. Este teatro é uma das melhores lições que conheço acerca da relação necessária entre riqueza e despojamento.

Não me custa acreditar que o próximo passo desta companhia poderá ser o de prescindir até dos chapéus, até das tábuas, até dos caixotes. Porque têm os corpos. E as vozes. Neste universo em que vivemos, ter um corpo (e sabê-lo) é ter tudo. Neste belo planeta onde aterrámos, ter corpo é ter alma. É ter à disposição a oportunidade de um dia nos tornarmos… humanos!, o que será algo já muito próximo do que consideramos hoje como divindade.

Na verdade, os chapéus, as chávenas e os caixotes são apenas adereços para a nossa imaginação usar. Somos nós, os espectadores, que necessitamos disso. Eles, como actores, talvez pudessem prescindir totalmente deles: é nos imensos seres que nas almas os habitam que se multiplicam. Com eles, viajamos por dentro de nós (dos pequenos Drákulas em nós) e até conseguimos ter compaixão para com aquela pobre criatura que é o conde Drácula impossibilitado de exercer o vampirismo em condições, por causa de problemas dentários (ideia que não lembraria ao diabo!) e até se apaixona e até vai parar à prisão.

No fundo, andamos desde o fundo dos tempos sempre a contar as nossas mesmas histórias; o que não passa pela cabeça de muita gente é pôr uma personagem feminina de barba, mudando-lhe apenas um pormenor quase imperceptível, e mesmo assim, e apesar de nos fazer rir, ela resplandece em toda a sua fragilidade, vulnerabilidade, sensibilidade, entrega e… feminilidade! E desencadeia em nós, mais uma vez, ao mesmo tempo que o riso quase incontido, a compaixão. A cena do comboio fez-me recuar há uns anos atrás, quando viajei num comboio romeno numa viagem de sete horas que não se distinguiu em nada das viagens nem dos comboios que na minha infância me transportavam até ao Alentejo. A imagem do casal que ali ia no “palco” (é mais uma arena de circo do que um palco…) sentado em dois caixotes a caminho da Transilvânia, e a delirante cena da inglória e quase impossível ida à casa de banho, encontrei-o num comboio romeno, todos a temos no corpo. Basta ter viajado num comboio pelo Alentejo há umas décadas, basta ter viajado num comboio pela Roménia há menos de uma década.

Esta é uma peça de teatro em que se chora a rir (convém não levar rímel). Sem dúvida. Mas isso, não sendo pouco, é o menos da peça. Há muito, muito, muito mais. Por detrás do riso, o coração, a contemplação, a ternura, a dor e o crescimento, a contenção e o siso. A sentir. E a ver.

Pela Companhia do Chapitô. Com encenação de John Mowat, e interpretação de Jorge Cruz, José Carlos Garcia e Tiago Viegas.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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