RESPIRAÇÃO, AINDA E SEMPRE Na ficção, habituámo-nos a histórias sem happy-end, como se estas fossem monótonas, pouco criativas, sem imaginação. Criámos uma cultura em que imaginação, para nós, passa pelos mais requintados horrores. E remetemos para a prateleira da literatura cor-de-rosa as histórias que acabam bem. Com uma excepção. As histórias para crianças, onde procuramos reabilitar um universo com aroma de caramelo e cores rosa chá. Enquanto a televisão transmite a morte e os horrores em directo servidos à hora de jantar. Quando toda a tradição da literatura clássica infantil é uma tradição de horrores. Bruxas más, madrastas malvadas, princesas que se picam e dormem sonos mortais, príncipes que são sapos, crianças encerradas em masmorras, sei lá, uma galeria de terror. A minha avó contava-me histórias tremendas que vos poupo de ouvir. Embora me sinta profundamente agradecida pela disponibilidade e confiança em mim que demonstrou ao contar-mas. Os adultos não têm a resistência das crianças para estas coisas. Mas vem isto a propósito da história contada numa introdução que fiz a um livro, e que também já contei aqui. E que é uma história feliz que eu não tive coragem de concluir com o happy end com que a termino agora: Dedicou então o resto da sua ainda longa vida, a ser feliz. Quem me deu a coragem, o mote e as palavras, foi um sonho. Assim concluo esta história que vos poupo de voltar a contar, e que aqui aparece com um começo à laia de fim, à maneira dos policiais, que também começam pelo fim, ou o crime, que depois é reconstituído, sendo que esta história não é uma história de crimes, mas de ressurreições. Tenho andado a pensar intensamente sobre respiração e reparei numa coisa que já sabia mas em que não tinha reparado, que são coisas diferentes. Saber é uma forma de ter, reparar é uma forma de parar pela segunda vez. E respirar. Parei então, porque agora apanhei o hábito de respirar a andar e também ao parar, o que não é uma coisa tão banal como parece, e reparei que a maior parte dos verbos em Português terminam em “ar”, que o respirar está-nos nos genes e na base da acção humana, que é isso que exprimem os verbos E também na inacção, porque para parar e estar, uma forma interessante e um bocado fora de moda de viver e de dizer viver, basta respirar. Respirar é, então, estar. Porque não é fugir, não é correr, não é temer. Por outro lado, falar de respirar é falar de uma forma de estar sempre a iniciar, porque a respiração é a maior novidade do mundo, recomeça a cada minuto, e às vezes, em casos aflitivos, que é como, sem sabermos, temos vivido a maior parte do tempo, em cada segundo. Então, respiração consciente é uma forma de iniciação. Eu diria que pelo menos a segunda, nalguns casos a terceira. A primeira foi o nascimento, já uma vez escrevi sobre isso. E para isso deu-me algum jeito ter nascido, porque falei com um saber de experiência feito. O nascimento é a primeira iniciação, dolorosa como é sempre uma iniciação, pelo menos era a nossa experiência até agora, embora a coisa esteja a alterar-se. Mas nem sempre se nasce a respirar. Muitas vezes nasce-se a morrer. Em relação a isso, também sei do que falo. E vai-se vivendo assim, a morrer devagarinho desde a primeira asfixia, que é como se nasce. Quase posso generalizar, falo da minha geração e das gerações próximas da minha, as excepções são mesmo excepções, acredito e espero que cada vez menos. Mas isto não dá muita saúde, nem física nem moral, e não necessita de grande comprovação, mais ou menos toda a gente sabe o que é isto. E o mundo também, por consequência. Mas um dia acontece o milagre: cada um a seu tempo, mas na verdade fora do tempo, recorda que passou por uma iniciação, mas que ainda não passou da fase das agulhas apontadas ao coração, ou dos cuidados intensivos, logo, que o processo não teve continuidade, a vida está lá fora, e nós sabe-se lá onde, numa espécie de pesadelo pesado com sabor a realidade, que andamos a prender a respiração há décadas, que não vai ser possível continuar assim durante muito tempo. Dispomo-nos então a sentir a dor e a esticar a pleura, encher, encher, subir, é assim que os balões se elevam e é assim que nós nos elevamos dos reinos inferiores por onde nos arrastámos tanto tempo. Então chegamos finalmente a esta maravilhosa Terra, a este maravilhoso planeta de milagre e encontramos a vida no seu solar esplendor, sol e lua numa história de amor. E encostamos à terra a cabeça prateada pela lua e doirada e aquecida pelo sol, virados para Meca, e para Jerusalém, e Moscovo, e Kosovo, e Nigéria, e Chipre, e Sintra e Espanha, Fátima, Japão, Tibete, Vietname e Cascais e todos os lugares do mundo, e agradecemos. E curamo-nos. A nós, e como consequência, à Terra. Beijamos a terra e como se com o beijo accionássemos um mecanismo misterioso, abrem-se as portas do céu. risoletapedro@netcabo.pt http://risocordetejo.blogspot.com/ |
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