2007-11-07
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Filhos, flores, cachorros…

Foi numa sala de espera, se é que se pode chamar sala de espera àquela coisa imensa onde as pessoas se acabrunham ou se perfilam nos hospitais, enquanto aguardam uma consulta. Eu refugiava-me na leitura. Ela, após algumas tentativas para me desviar da minha alienação, que passaram por perguntar as horas, em que número de senha ia a chamada, qual era a minha consulta e mais umas quantas coisas, finalmente jogou forte, dirigiu-se à máquina de café, olhou consternada para ela durante uns minutos e voltou para o lugar lamentando-se: “nem um chá consigo tomar…”. Era a minha deixa. Desisti do livro, rendi-me ao momento e lá fui numa visita guiada à máquina distribuidora de bebidas quentes e ela bebeu o seu chá, eu o meu chocolate, e assim confraternizando reconfortantemente, dispus-me a ouvi-la. Se não os podes vencer, junta-te a eles, neste caso, a ela. Iniciou a sua narrativa épica (sim, é uma heroína anónima, como há por aí tantas de quem nunca rezou nem rezará a história) com muitas descrições e fortes momentos líricos. Fiquei então a saber que esta mulher, que anda por volta dos quarenta mas que, como muitas das nossas mulheres do campo apresenta uma idade intemporal, mora numa aldeia não muito longe de Lisboa, nunca casou e “sabe” que “nunca” vai casar, enfatizando o nunca, perdeu os pais, vive com um irmão que lhe inferniza a vida, porque se embebeda, porque nunca lhe dá o dinheiro suficiente para a casa, porque com o álcool a trata mal, porque… não lhe dá sobrinhos, porque só pensa em engalanar-se e ir para as festas mas nada de encontrar “uma rapariga séria” com quem case, que lhe venha suavizar os dias a ela com uma presença outra, que lhe dê filhos a ele, e a ela bebés de quem cuidar e muitas alegrias. É o sonho dourado desta mulher: que o irmão case, traga para casa uma mulher que lhe faça companhia nos dias tristes enquanto ele vai trabalhar, e que lhe dê bebés, os bebés que desistiu de ter. Às portas de Lisboa, Europa, 2007.

- Mas ainda pode casar, e ter os seus filhos…

Olhou para mim com tal ar de escândalo e espanto que eu teria recolhido as palavras, se pudesse.

Esta mulher dura e amarga suaviza quando fala nos bebés e nos cãezinhos abandonados que lhe vão parar à porta. Fica em estado de graça perante a ideia de maternidade, fala no aleitamento dos cachorrinhos pela mãe, como quem descreve um milagre. E tem razão.

Mas novamente em guarda, e agora que encontrou ali uma advogada de defesa que a escuta com atenção, apresenta mais queixas, das vizinhas da frente. Esta mulher que adora bebés e animais e… plantas, tem um modesto jardim em vasos virado a oriente com flores que me descreve com um relato de amor de quem realmente ama, mas que, do lado oposto da casa tem umas vizinhas invejosas que lhe deitam mau-olhado às plantas, de modo que flor que ali semeie está condenada a secar pela acção da secura do olhar.

Mas ela não desiste. Por enquanto não pode fazer nada, porque o dinheiro nunca sobra, mas um dia, quando conseguir amealhar uns tostões, vai comprar umas flores… “de plástico!” para pôr naqueles vasos e o que há-se secar mesmo são os olhos delas!

Neste momento ouviu-se o som da máquina a mudar a senha, era o número dela, levantou-se, endireitou-se, pôs o escudo, o elmo, as esporas e marchou rumo ao consultório, digo ao pequeno gabinete apinhado com o médico mais os estudantes e enfermeiras a entrar e sair e onde foi devorada pela minha incapacidade de ver o que ali aconteceria. Não sei de que se vinha queixar. Talvez do mau-olhado das vizinhas. Talvez do bêbedo do irmão. Não sei se estes médicos sabem tratar estas dores…

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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