2007-10-24
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Atracção da luz



Sempre me intrigou a chamada “atracção do abismo”. Para além da sensação física que são as vertigens, que será que leva os humanos, quando se encontram muito alto, a sentirem o impulso suicida para se atirarem dali abaixo? Mesmo quando estão felizes, mesmo quando não lhes passaria pela cabeça matar-se, mesmo quando, eles próprios, não conseguem compreender a razão? Que sereia silenciosa e oculta nos chama de baixo, ou dos infernos (que significa, afinal e apenas, os lugares inferiores)?

Nunca fui muito atreita a vertigens, mas experimentei, há pouco tempo, esse silencioso apelo do vazio. Projectando a voz de cima onde me encontrava, para o fundo, o corpo queria seguir a voz, a alma ou uma parte qualquer de mim queria atirar-se para baixo deixando-me ali sozinha a tremer, de pânico.

Este misterioso tremor de uma força interna que nos empurra no sentido da gravidade, ou uma força externa que nos atrai a partir desses lugares profundos, como se explica, que razões as movem?

Tenho falado com várias pessoas sobre isto, sem conseguir chegar a uma explicação que me satisfaça. Nunca li nada sobre o assunto, mas também não procurei. Sabia que a resposta haveria de tê-la ou de encontrá-la um dia, no momento antes do voo, se conseguisse arriscar, se conseguisse experimentar e saborear esse perigoso micro-segundo antes do recuo. O segredo estaria ali, no centro do instante imediatamente antes de atirar-me. E seria esse segundo a salvar-me. Para sempre.

Com a profunda convicção de que só descemos para subirmos (os cabalistas dizem mais ou menos isto de uma forma um “bocadinho” mais complexa) foi também claro que com a consciência clara, a descida já não necessita de ser tão física como foi em tempos de escuridão, que a descida pode ser feita na consciência, com a imaginação. E alguma coragem. Coração em acção. Aberto e cheio de ar.

Assim sendo, subi ao muro do abismo e deixei-me estar. Se é que se está num sítio assim. Deixei-me pairar. A respirar o ar do alto. Olhando o fundo com a cabeça no céu. E percebi o que receamos: a tremenda, a divina consciência de poder, de ser, de sermos, realmente, estrelas. Envergonhadas, reconheço. Que acontece a uma estrela envergonhada? Quer esconder-se. Mas não existem esconderijos no céu. Assim sendo, a estrela precipita-se para o escuro fundo do abismo onde poderá (assim pensa) ocultar de si mesma que afinal brilha.

Ali estava eu com os pés aprofundados no abismo em vertiginoso balanço a elevar-me aos céus que desde cedo me disseram que não merecíamos e todas as outras coisas que fomos ouvindo gritadas, ou sussurradas ao ouvido ou que vimos nos esgares alheios: que somos pequeninos, pecadores, míseros e mesquinhos, rastejantes. Mesmo que os pais nos tenham amado e embalado, houve sempre um silencioso sopro de serpente, um assobio a silvar-nos, a “lembrar-nos” o que não lembra ao diabo. E com esta “lembrança” de mentira nos esquecemos da verdade: que somos belos e bons, compassivos, luminosos, gloriosos. Todos. Mais máscara, menos máscara. Consciências de estrelas na terra. E é isto que nos salva. O poder do Ser. Para além de todas as teorias e religiões, o sabor, o saborear a existência.

Não precisa de se atirar, o que aceita a queda como um breve momento antes da elevação. O que aceita o chão. Não precisa de mergulhar no buraco negro o que sabe que o seu movimento natural é a elevação. A partir do chão. Não precisa de recear o poder o que sabe o que criar: luz e luar.

Não precisa de recear o céu o que se libertou do nevoeiro. E do véu. O segredo do difícil equilíbrio sobre o muro é amar o ar, o chão, a lava e o vulcão. E confiar no ar, no momento antes do atirar, onde a escolha se faz entre o estatelar e o voar.

Pode-se voar a partir do chão, mas também pode acontecer estar-se em cima com a consciência do abismo. A esse não há ar que lhe valha. Porque o abismo está dentro dele, onde quer que vá. A saída é mergulhar nesse abismo interior, momento miraculoso em que toda a terra se transforma em serena planície, sagrada montanha, e o céu se projecta no inferno e terra se espelha no céu, e o mundo passa a ser em todos os seus cantos, um lugar seguro. E o pequeno verme irradia, do casulo, um imenso lume. Luz e perfume.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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