2007-10-03
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


A propósito de Deus e do seu enganoso nome



Tenho vindo a aperceber-me que já não é embaraçoso falar de Deus, ou citar Deus, digo as palavras que lhe têm sido atribuídas. Mesmo para um racionalista (ainda persistem alguns; a obstinação humana é uma das inefáveis maravilhas do mundo). A humanidade tem passado, ao longo do seu crescimento (acreditemos que sim) por várias etapas do seu relacionamento com Deus, desde momentos em que não o nomeava, não pensava nele, e a crença ou a fé eram conceitos inexistentes, pelo absurdo, porque não é preciso nomear ou crer naquilo que está incorporado, culturas há e houve em que a relação com Deus se fez/faz de forma natural, justamente através da natureza, e então Deus é natureza; Deus já foi (e é) instrumento de poder, forma de conhecimento, objecto da filosofia, tábua de salvação, pai, verdugo, monarca, supremo sábio, supremo louco, cadáver (sim, já se proclamou que Deus morreu, houve quem lhe testemunhasse a morte, embora ninguém tenha assistido ao seu nascimento, excepto um boi, uma vaca, a incontornável mãe, mesmo os reis magos já chegaram um bocado atrasados) e Deus foi… nada. Recordo-me de ser embaraçoso falar de Deus. Deus era associado ora a ideologias perversas e oportunistas do “seu santo nome”, ora, mais recentemente, a superficialidades de nova era. Tem havido de tudo. Conheci quem tivesse erradicado do seu vocabulário a palavra, fugindo-lhe como o diabo da cruz. Depois, lentamente, Deus foi renascendo. Quem o trouxe? Paradoxalmente, quem, juntamente com os intelectuais e os filósofos, anteriormente já o matara: a ciência. Hoje não é difícil encontrar um cientista a falar de Deus ou a confessar que a ciência o aproximou da transcendência. Hoje, qualquer intelectual que não tenha ficado demasiado constelado na história poderá referir-se a Deus e até citar livros sagrados como quem cita um poema. Porque o conceito de Deus, tendo sofrido em determinados momentos processos de afunilamento, ganhou com o pós-modernismo e suas circunstâncias, uma ampliação de sentido que permite que cada um veja nele o que quiser ou sentir sem que alguém se choque: divindade, natureza, ciência, mistério, magia, ideais de fraternidade e justiça, encontro consigo mesmo ou o nada filosófico próximo do zen. Há até quem tenha recuperado para ele o maior dos conceitos, o de amor. Há quem o nomeie, quem o pratique e quem o sinta. Refiro-me a Deus, refiro-me ao amor. E há quem o recuse. Refiro-me a Deus. Não conheço ninguém que explicitamente tenha coragem para negar o amor. Esse deus maior. Razão pela qual me parece o nome adequado (ainda que provisório) para Deus. Porque existem ainda uns obstinados à procura da palavra perdida, que poderá ser, quem sabe, o seu nome.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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