Risoleta Pinto Pedro
DA CRIAÇÃO
“Porta de ferro
linha
fio dourado
Cobre-te
com a sombra
que resta dos teus dias”
Daniel Vieira Jorge
Conversamos, Helena e eu, sobre poesia, literatura, criação. Trocamos ideias e gostos sobre poetas, que da vida já chegam os desgostos. Nisto, estamos de acordo.
Helena anda a ler um poeta cujo processo poético tem tido o privilégio de acompanhar.
- É tão diferente de ti…
Diz-me, referindo-se a mim. Perante a comparação, sinto quase necessidade de me desculpar… e ela:
- Não fiques embaraçada, não faço comparações…
- … nem eu tenho complexos, nem sequer tento um estilo que não é o meu… os poemas dos meus poetas põem-me muito feliz como leitora, como os meus delírios em forma de palavras me põem muito feliz como criadora, e eu preciso de tudo isso. Mas estou a ficar cheia de curiosidade. Apresenta-me o teu poeta.
- Não posso.
- Não podes?! Como não podes?!
- Não o conheço…
- Mas se te manda os poemas, ainda por cima em construção…
- Precisamente. Porque não nos conhecemos. Ele diz que se nos conhecêssemos não mos mostrava.
- Ok, Helena, mais uma das tuas histórias, nem tento desvendar. Mostra-me ao menos os poemas.
- É que não são bem poemas…
- Que são então?
- São… haikais…
- Oh Helena, isso são coisas que só os orientais…
Foi então que para não me deixar dizer mais disparates, Helena me mostrou o que nunca mais vou esquecer, um poema em construção. Nascimento, metamorfose, maturidade.
Do embrião… ao ser.
E perante o meu silêncio:
- Então, não gostas?!
- Ainda não sabes ler nos meus silêncios? Não vês como me comove este rastejar, este gatinhar, este crescer do poema em direcção ao… caroço?
- Ao…
- Ao centro, ao núcleo do átomo, à pedra oculta…
Sabes quem me lembra? Carlos de Oliveira e o seu exaustivo trabalho de depuração da escrita como se procedesse à lapidação de um diamante, ou Eugénio de Andrade, quando contava que por vezes do poema inicial ficava apenas… uma palavra!
- Tu achas que é o mesmo?
- Não sei, não estive na “oficina” do poeta, mas o que acho interessantíssimo neste haikai é que é o estado depurado daquilo a que Pessoa se refere quando fala em “sinceridade” e “fingimento” literário; isto é, a vivência por si só não faz poesia, o poema também não: “é como que um terraço sobre outra coisa ainda/essa coisa é que é linda”. Não é o vivido que faz literatura, nem o juntar hábil das palavras, é a absorção/transfiguração da coisa que assume um carácter interessantíssimo e raro e original porque reúne o laconismo hermético (e iniciático) do estilo haikai com o nosso cenário cultural ocidental a partir de uma experiência vivida ou lembrada ou imaginada mas sempre depurada e transfigurada pela redução ao (a um) essencial. É como a cintilação de um pirilampo que mal se mostra, mas ilumina o mundo.
Não conheço este poeta, mas gosto desta poesia. Podes chamar-lhe haikai, oração ou júbilo. Para mim é igual.
Não o conheço, mas imagino-o adormecendo sobre penas de poemas, sem domínio e com ócio; porque ele sabe que não domina nada, nem quer, apenas recebe, flui e goza e regozija-se e agradece e partilha.
- Mas… afinal conhece-lo?!
- Não Helena, ainda menos do que tu. Mas pergunta-lhe se não é assim.
- Não gosta muito que lhe fale dos haikais…
- É natural. Apesar de não o conhecer, compreendo muito bem o seu embaraço, como eu sentia antes de me habituar; é que tal como o teu poeta, ou como eu o imagino, sinto que não tenho “mérito” no caso, não dá trabalho, não causa suor nem dor, não rouba tempo, dá prazer, é epifania em estado puro.
- Mas ele trabalha-os…
- Não. Brinca. Sinto que é isso que se passa com ele; na nossa cultura este tipo de comportamento não é muito bem entendida e nós sentimos que os outros estão a falar de um grande equívoco, que nós nem estivemos ali, por acaso íamos a passar e a coisa caiu e nós apanhámos com ela em cima. A verdade é que tivemos pelo menos o mérito de ir a passar ali naquele momento, podíamos ter ido por outro sítio ou levar o guarda-chuva aberto a proteger-nos. E já não nos molhávamos…
E se ainda por cima temos a inconcebível lata de afirmar que gostamos mesmo do que escrevemos, sabendo que não temos nenhum mérito nisso…
- Como não?!
- O mérito é da humanidade que nos trouxe até aqui, das nossas histórias que nos trouxeram até aqui, da natureza que nos criou e nos ligou ao mundo. Helena, envia ao teu poeta, da minha parte, um imenso abraço, mas quase invisível, como se trabalhasses um haikai até à perfeição, entra-lhe pelos poros, até ao caroço, até ao mais escondido, ao mais escuro, no mais resplandecente.
Desta vez fui eu que lhe virei as costas, deixando-a perplexa, pelo não usual gesto.
Ainda ela se surpreendia pela inversão de comportamentos e já eu voava pela estrada como ar, ao encontro de um perfume a trigo seco dos campos da minha infância.
Ideia que daria um bom haikai, tivesse eu o talento alquímico de síntese do meu poeta. Que Helena não me ouça, porque não iria gostar desta usurpação do poeta que até aqui foi seu. O que prova que afinal ele é apenas… do mundo.
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