Risoleta Pinto Pedro
Memórias de Helena
Falamos de memórias. A memória de Helena é torrencial:
- Vivo numa casa que tem o número dezassete e recordo-me de uma outra onde vivi até aos dois anos que tinha, à porta, o marco quilométrico 17. Recordo-me de um vestido com as cores do arco-íris onde fui feliz. Tinha quatro anos. Nunca mais vi esse vestido. Agora, todos os dias me elevo até ao arco-íris e de lá trago um tom e um som, que recolho com uma paleta de luz, com um diapasão dourado.
- E és feliz?
- … no arco-íris. A certeza do arco-íris é suficiente. Agora estou em casa, meu marco 17, arco-íris com que me visto. Mais tarde, por volta dos sete anos, tive um vestido feito do tecido de um pára-quedas. Era cor de laranja. Agora, em noites com sorte, salto em pára-quedas para aterrar em segurança no ar.
- Aterrar no ar, Helena?
- Oh, tens razão, nem me tinha apercebido que aterr-ar já pressupõe que é no ar…
- Não... pelo contrário, aterrar é no chão.
- Então e o ar? O ar de aterrar?
- Vens para terra, a partir do ar…
- Desculpa, aterrar significa ir da terra ao ar… é pousar no… ar!
Neste ponto da conversa desisti; não adianta, quando se põe com estas teimosias… E prosseguiu:
- Passei parte da vida metida numa concha de algas… húmida e fria.
- E agora?
- Agora… tenho uma concha de cobre que não se afoga mas flutua, que tem terra, sementes e jardim, e tem asas e uma capota que fechada fica tipo nave espacial e especial, e onde posso dar a volta ao mundo com Bach e Herberto Hélder.
- E…
- E o quê?
- Onde foste arranjar essa concha ou essa coisa que o valha?
- Onde é que eu poderia arranjar uma concha de cobre se não numa oficina de alquimista?
- E para que serve?
- Para que serve? Não serve para nada!
- Mau! Então…
- Para que a quero? A questão está justamente aí. Quero-a pela sua maravilhosa e estética e ética inutilidade. É para levar nos sonhos. Que também não servem para nada. Mas onde reencontro vestidos de arco-íris e de pára-quedas e onde posso aterrar no ar e, em chegando ao quilómetro dezassete, parar. E depois voar. Já não há que caminhar, depois do quilómetro dezassete. O quilómetro dezassete é uma varanda sobre o mundo. É de lá que volto a encontrar o meu vizinho de quando eu tinha quatro anos que tocava saxofone. O som do saxofone é um dos sons mais maravilhosos da minha infância. Quando tocava, o meu vizinho da Banda ganhava asas e uma auréola sobre a cabeça. Se eu tivesse ido à catequese, tê-lo-ia confundido com um anjo anunciador. Como não fui, consigo lembrar-me do meu vizinho como um anjo que me anunciava que podia viajar na música e ir para além da dor. Que será feito do meu vizinho? Já se passaram tantos anos…
- Não me digas que… Helena!
Mas já não me ouvia. Entrava no carro. Tenho a certeza que se dirigia a Alenquer, a vila presépio onde se deu o remoto encontro da menina quase bebé com o anjo do saxofone que tocava na banda. Confesso que fiquei cheia de curiosidade, aguardando o regresso dela.
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