EGOÍSMO
Entro na sala e vejo-a. Está de costas para mim, virada na direcção da janela, mas o olhar não está à altura de ver o exterior. Que olhará? A parede, o rendilhado das costas da cadeira? A moldura inferior da janela? Aproximo-me, os olhos dela estão semi-cerrados. Percebo que não olha para fora. Mas também não olha totalmente para dentro. Olha nos dois sentidos e talvez em todas as direcções. Ou nenhuma. Parece uma estátua, não de sal, porque não olha para trás, mas de serenidade. Em redor dela, um profundo silêncio, um silêncio físico, um silêncio presente, quase sonoro de tão real, não ensurdecedor, mas terapêutico, mais terapêutico do que música de Bach, o que é uma coisa muito difícil, quase impossível. Afasto-me pé ante pé, como quem receia estragar uma delicadíssima peça de arte. Afasto-me, mas trago-a comigo no coração e a deslizar pelo corpo, com o sangue. A partir deste dia, cada vez que entro na sala e me aproximo deste canto onde decorreu o teatro da serenidade, é como se toda a cena se re-iluminasse, como se um director de cena subitamente acendesse os holofotes e todo o imóvel silêncio fora e dentro de mim mais uma vez se desenrolasse por toda a eternidade. Porque este teatro a que eu assisti e que, como espectadora experimentei, é, realmente, o teatro da eterna e indestrutível serenidade do mundo. Quando na rua “caio” no meio de alguma perturbação, quando na escola me vejo mergulhada numa daquelas reuniões que há nas escolas e está tudo dito, eu tele-transporto-me até ao canto da minha sala e ponho lá sobre o palco, digo, em cima da cadeira de vime, virada para a parede, a actriz do drama universal do silêncio a que assisti, a minha gata, e fico com ela, personagem e espectadora, esplendidamente em paz. Em profundo egoísmo, que no ensurdecedor mundo em que vivemos é uma forma de heroísmo.
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